28.2.07

119

não fosse o mundo essa porta fechada

em que os estadunidenses cultivam seu viveirinho de democracia dizem eles

fazendo-nos de ração

este lugar tão cheio de valores sagrados

talvez aqui até pudesse ser um lugar legal

talvez até surgisse algo de bom

se deixássemos de aprisionar o destino

se não vivêssemos para reconstruir a verdade

para dizer o mínimo

se aceitássemos o que os olhos vêem e entendêssemos que há o que eles não vêem

e que o que se vê às vezes talvez nada seja

mas tudo tem que ter um único e certo e determinado significado

tudo absolutamente tudo tem que ser benéfico ou maléfico a este mundo dito livre

que livremente elege e devasta alvos

qualquer demência tem mais razão que qualquer política de segurança

segurança

esse oásis no deserto do medo

a segurança é a fortaleza flutuante murada boiando ao sabor das marés do pânico

o lugar onde vivemos a repetir insistentemente que a vida não tem limites

desde que não os ultrapassemos

desde que entendamos quem são nossos vilões

desde que não reclamemos do fogo amigo

27.2.07

118

esta necessidade de dizer

para nada dizer

olhos que não param

a máquina vai independentemente de mim

contra ou a favor

obedece a comandos remotos

que lhe ditam todos os milímetros

vou de passageiro

arquiteto grandes mudanças

enquanto para todos os efeitos

imputam-me o comando deste desgoverno

e a dor de todos os meus amargores

e a passagem de tudo sem que se compreenda bosta nenhuma

simplesmente estômago e genitália

e o apego raivoso aos nobres ideais

e o desejo desesperado de sei lá o quê

talvez de que o universo deixasse de se mover tão tranqüilo

se ao menos eu não tivesse idéia de mim

já seria um progresso

a bem dizer não sei nem o que sou

ou se sou

26.2.07

117

tudo termina em cansaço

não passa de tentativas

portas encerradas

nem céu nem inferno

um dia qualquer

todos com a raiva de sempre

as ânsias triviais

sinônimos de viver

velhos medrosos sentindo-se jovens drogados por efeito dos remédios que prolongam sua decrepitude

o ser humano venerando o monstro que o espelho lhe mostra

e construindo seu futuro mediante a destruição do presente de todos

dentro dos manicômios também há uma normalidade

na guerra há uma normalidade

a paz pode não passar de um número controlável de conflitos

de uma guerra que não passe de certos limites

que não mate certas pessoas

então há paz

entretanto na dúvida liguemos os alarmes

fechemos as janelas blindadas passemos as trinta e cinco trancas na porta

do resto deus toma conta

e tudo está inquestionavelmente normal

o trabalho a virgindade e a religião são o caminho para a felicidade

siga-o

e me deixe roubar meter e blasfemar à vontade

25.2.07

116

principalmente depois que o crescimento biológico acabou

minha vida tem sido um exercício de paciência

involuntário em grande medida

se não em toda ela

sentado aqui ouvindo sempre as mesmas palavras vindo de dentro

o medo deste fio tão frágil

a obscura intimidade

a inexistência de outros mundos

a criação de crenças que correspondem apenas a metade de mim

isso quando muito extensas

a destruição de meus esteios pela outra metade ou por quem seja

pois raro é que eu tenha a sorte de as metades serem apenas duas

e palavras palavras palavras e palavras

repetidas repetidas repetidas repetidas

nunca perdendo o sentido

nunca me dizendo coisa alguma

um exercício involuntário de paciência esta vida

exercício movido talvez pela mal contida covardia

esta brincadeira idiota de camundongo burro em labirinto eletrificado

24.2.07

115

se eu pelo menos não tivesse o hábito de falar

e de ditar modelos

e de fazer projeções

no entanto

se sou fruto de todo este gasto de energia mental

meu talento não é a gerência de mim

não movo nuvens

mal movo meu corpo

se todo este tempo infinito que passo a antever-me foi de alguma valia

ele o foi para mostrar que nada vejo

que sou prisioneiro do vazio

absolutamente livre de qualquer impulso

entre ver e fazer há alguma coisa que não tenho

se tenho é como se não tivesse

só sei que o que realizo

é sempre uma aberração de meus desejos

estou sob um sol que queima

fugindo de morrer

chamo isso de viver

não quero torrar sob os raios desse astro de quinta grandeza

não quero morrer torrado

ou pior

viver torrado

viver não dá prazer

esta permanente maquinação de planos de fuga

a diária descoberta de que só perdi tempo

de que o máximo de que fui capaz foi de criar um personagem assim assim para enganar a gentalha

23.2.07

114

não sei por que ser otimista

melhor ver tudo como uma desgraça permanente

já que temos que olhar para tudo como se olha para o paraíso ou para o inferno

para que se deixar envolver num bem-estar que acaba

para que acreditar no bem

estou cansado de quedas

e da dor das quedas

e da solidão que de repente se mostra à minha volta

tudo aquilo não existiu

tudo aquilo não era o céu

tudo aquilo não era nem eu

certamente não sei o que é felicidade

até hoje sempre que me cri feliz procedi com orgulho com desprezo com arrogância

não sei se procedi mal

sei que me dói não ter mais disposição para proceder assim

sou impérvio ao eterno ao transcendente ao que não seja da matéria de que se faz a tristeza que o homem plantou nesta terra

olha aí a bosta do lirismo e ainda dos bem pedantes

fui vendido a mim como autêntico

esta contrafação

22.2.07

113

sou tão desinteressante tão sem nada para se ver tão sem palavras tão cheio dos ruídos mais constrangedores deste mundo

ser eu é um saco

não observo nada de curioso em mim

as coisas não se revelam para mim

ou porque nada têm a revelar

então o saco é o mundo

ou porque não sou apto a revelações

então o saco sou eu

como seja

que saco

saco sem saída

de que agora falo com certo humor

mas há dias

muitos

em que me sinto no fundo do saco

parece que ele fica mais fundo conforme o tempo passa

e lá no fundo não encontro saída alguma

parece que por onde quer que eu ande

ando dentro de uma tumba

sinto que tudo se encerrou

e coube a mim como a tantos o papel de morto-vivo

e então dói

dói nada sentir

dói sentir que tudo acaba aqui

e que permaneço

representando o desinteresse subsistente

21.2.07

112

não escolho quem vai e quem fica

apenas puseram-me esta corda na mão

vez por outra

não sei por quê

puxo-a

e ouço um grito vindo do outro lado da parede

não quero mal a ninguém

nem bem

apenas sinto-me obrigado

imperativos

uma ponta de corda foi deixada pendurada no mundo

decerto para que alguém a puxasse

talvez ao grito se repute um dúbio sinal de vida

afinal quem grita

no mais das vezes

grita porque vive

grita porque a vida não lhe vai muito bem

mas puseram-me aqui

neste cubículo estanque com esta corda

não me deram o mapa da cornucópia nem a caixa de pandora

apenas a bendita corda

e quando a puxo

ouço um sinal de vida

além daqui

uma vida sobre um patíbulo

quem sabe

não restam muitos escrúpulos a um desesperado

e talvez quem não participe da farsa

mas possa ser espectador de todas as suas fases

ria de se acabar desta condição patética

eu riria

20.2.07

111

maioria da vezes isto

falta do que falar

desde que acordo até ir dormir

uma queixa ou outra

que o desconforto é permanente

mas nem careceriam tanto de palavras

as queixas

poderiam ser olhares rictos gestos de mão

ou simplesmente meu rosto

sem expressão alguma

defunto

no qual de tanto se ver nada

pensa-se ver tudo

um início de sorriso

uma gota de choro

impressões

eis o de cujus

pensando em nada

nada pensando

quem pensa sou eu

o que penso é igual a absolutamente nada

não muda o mundo

nem o defunto

nem a mim

perenemente neste estado

às vezes desejo tanto sair de cena

antes de me tornar uma bosta completa

é assim mesmo

para todos um dia acaba

com ou sem choro

com ou sem sorte

19.2.07

110

a mente má que domina o mundo

suas fantasias concretizam-se

fatos objetivos

todos os olhos voltados para a fonte das catástrofes

a mente má não deixa ninguém sem uma boa desgraça

todos rendem-lhe culto

chamam-na de deus

e dizem que não que é isso longe de mim por favor não me ofenda

e queimam-me numa fogueira e torno-me assunto do dia e todos falam de como queimei bem de como sofri de como fui sem brio de como fedi a churrasco e roupa queimada

depois todos irão ao altar pedir perdão por meus pecados

como bons cristãos que assam seus hereges e depois pedem a impossível salvação dos hereges à santa madre

sabem os bons filhos de deus

cuja salvação é batata

que pedir pela salvação de quem não será salvo é duas vezes mais aprazível

pois quem se quer no inferno lá permanecerá

para todo sempre

não importa o que se faça ou diga

e além disso o solicitante sai bem na fita perante o onitudo

ao demonstrar sua piedade infrutífera

18.2.07

109

difícil a tal da sinceridade

há coisas que sei que procuro esconder de mim mesmo

a vida pesa

talvez morramos quando o peso se torne muito

talvez quando cansemos de ser bestas de carga

talvez quando vejamos que este fardo nada representa

um dia seremos apagados

um dia dirão que não passamos de frutos da imaginação

basta ver como olhamos para o passado

tão impalpável

tão falto de interesse na maioria dos casos

não vivemos o presente

não amamos o passado

não cuidamos do futuro

nada melhor que a ignorância

17.2.07

108

quero saber como não se pensa

como se cala esta voz

como se deixa de ser este fato corriqueiro

tragediazinha cotidiana

aprender a ser oco

não reter falatório

todo este coro

saber o que é felicidade

nunca deixar de ser feliz

nunca cair na tentação de abandonar a paz

não sei como me tornei isto

mais um

era o mais provável de acontecer e aconteceu

esta coisa perdida que perdeu tudo

e enxerga mal onde quer que o mal não esteja

simplesmente sou comum

e como todo comum

não sei que sou mais um

16.2.07

107

falar de coisas bonitas como

a flor é bonita o mar é bonito a paz é bonita

pronto acabou não há mais o que dizer

o bonito é bonito

ponto

e agora ficamos sentados aqui olhando o teto as paredes a cara do outro até o fim da folha

é assim que somos

a desgraça desperta nossa curiosidade nosso desejo de conhecer e de interagir

enquanto o bom

bela bosta o bom

ó a delicada borboletinha

ó a aurora polar

tão diferente de quando dizemos morreram não sei quantos milhões na catástrofe

então há aquela reação

todos falam

e os feridos

e o garotinho que teve a genitália devorada pelo pitbull

meu deus não me diga

e o preço da alface na feira menina no supermercado também está uma loucura

e a fulana cujo marido foi pego com um travesti no motel

não brinca

difundir o mexerico é uma prova de amor

de que pensamos no próximo

e de agradecer ao altíssimo

que o mundo não tenha amanhecido perfeito

15.2.07

106

já nem sei se gostaria de que alguém me desmentisse

de tanto acreditar nesta dor já me sinto dono dela

já a vejo como obra minha

a criatura que superou o criador

vivo dela e nela talvez esteja minha sensação mais próxima do conforto

meu porto seguro

minha escusa universal

sem ela derivo

ela é daqueles inimigos por quem se cria uma certa estima

sem a dor só há o novo

e o novo deste mundo não costuma ser muito animador

o novo deste mundo costuma ser somente

perdoem a infâmia da rima

uma nova dor

entre duas desgraças insolúveis

melhor nossa conhecida

14.2.07

105

dentre tantas dúvidas

uma certeza

isto não acaba

vivo no inferno da razão

o único

e a razão me odeia mais do que eu a ela

ela é maior do que eu

e ao menos algo ela é

enquanto eu um zé mané um henrique qualquer

quem além de mim sabe meu nome

que nem é exclusivamente meu

nem é preponderantemente meu

exceto em meus sonhos

quando acho que mereço algum consolo por minha insignificância

e me abarroto de ilusões a meu respeito

e vivo por alguns segundos no outro lado da obsessão

se é que tenho idéia do que se passa comigo

se é que isso para que não paro de olhar sou eu

o que apenas mudaria o objeto

não o gesto

embora eu nada veja

sei que não há saída deste cubículo escuro

13.2.07

104

espero um vento a favor

ou o fim

e que o resto da vida seja só descida

que o céu seja só uma questão de deixar cair

e que todas as subidas e todos os outros esforços conduzam apenas ao inferno e à danação

que há de tão bom nisto

viver em tormento para alcançar a paz

sei sem nenhuma sombra de dúvida que nunca resolverei o enigma

eis o atestado definitivo da minha estupidez

como se não bastasse esta figura patética

o competente redator burocrático calvo obeso hipertenso com permanente dor nas costas que não consegue sobressair cujos talentos todos reconhecem porém menos que suas fraquezas tabagismo solidão gula preguiça dissimulação e que nunca vai ser nada na vida e que aos quarenta já se vê morto e acabado e que odeia ter que se esforçar tanto tonto só para viver uma vidinha de classe média ladeira abaixo

e no fim da ladeira não há céu disso tenho certeza

12.2.07

103

mesmo que haja arco-íris

tudo vai ser sempre assim

não precisa parar

nada se move

a não ser quando nos movemos

então tudo se move apenas o bastante para crermos que tudo permaneceu no mesmo lugar

essas coisas são mais fiéis que sombras

pois não dependem de luz

sempre sincrônicas a nossos passos

e o mundo sempre o mesmo

correndo ou morto

vez ou outra parece que vai desmoronar

você não voa

mas se voasse se sentiria ainda no chão

tudo voou com você

e se acaso você destrói tudo

nem por isso

tudo se esquiva ou simplesmente não se abala

quem sabe

há o mundo

e ainda que muito adiante se olhe

veja

defuntos

e em volta deles mundo

colado em suas almas

como uma alucinação pegajosa

que de tanto capturar nossos olhos deixa-nos sem saber

se aquilo é parte de nossa existência

ou se somos parte da existência daquilo

11.2.07

102

qualquer igreja é uma espécie de empresa

de porta em porta vendem-se deus e promessas

e quem não crer vai pra vala

e os tolos doidos para ser salvos amontoam-se nas portas das agências divinas

entram e saem sem tirar nem pôr

mas convictos de que foram salvos

né por nada não

mas acho que tem nego fazendo papel de besta nessa história

que porra de deus é esse

para quem se dá dinheiro tempo energia

e em troca se recebe a obrigação de ter a íntima convicção de que algo de bom nos foi feito

essa história tá mal contada

e deve ter neguinho se dando bem em cima da boa-fé da plebe

esse deus também anda muito fazedor de cu doce

se ele é salvador e se eu preciso ser salvo

me diga o que está faltando

10.2.07

101

não é por nada não ô todo poderoso

mas isto é tudo que você tinha para mostrar

se é

grande bosta

fique sabendo que com um centésimo da minha imaginação posso conceber vidas bem mais interessantes que a minha e a da maioria das pessoas

estamos todos aqui chafurdando nesta merda

contando com uma porra dum paraíso que dizem ser muito melhor que a vida de qualquer rico deste mundo

o caso é que a riqueza eterna a partir de agora já bastaria para fazer meu paraíso

riqueza saúde paz

se deus não existe para dar-nos isso

então que importância nessa coisa chamada deus

ora pelo amor de deus

poupem-me dessa história do invisível e do amor que constrói

toda a nossa ética é baseada em coisas invisíveis provedoras de bem e mal

uma coisa ou um ser que ninguém nunca viu

orienta-nos aos valores mais elevados

e por conta disso fazemos o que melhor sabemos

matar e morrer

9.2.07

100

talvez deus espere reconhecimento por sua obra

tanto quanto esperamos pelas nossas

e sem dúvida se o universo é obra de deus

que puta obra hem

grande imenso gigantesco

e sem discussão bastante bonito também

mas depois de algumas horas admirando você pára e pergunta

e aí

o sol está lá fervendo a zilhões de graus e eu daqui só posso olhar e sentir um pouco de seu calor

calor mais que suficiente para mim

e olhe que o sol em termos de cosmos nem está tão longe e nem é lá grandes coisas na escala de grandeza estelar

e nem ao sol você pode chegar

qualquer sistemazinho de segurança é bastante para isolar-me da parte interessante do mundo

dinheiro poder beleza luxo como quero esse horrível mundo das aparências

não é por nada não

mas por mim deus pode pegar a porra da beleza interior e enfiá-la em seu divino nariz

que já estou de saco cheio das sutilezas cósmicas

dos mistérios divinos

das belezas ocultas

sinceramente prefiro a obviedade de um mercedes-benz

8.2.07

99

obrigações

será que não podiam inventar outra forma de sofrimento

já não bastava este duvidoso ônus de respirar

criaram-se além dessa muitas outras coisas pesadas e tristes

governo deus civismo ensino família patrimônio medicina legislação tributos juventude adolescência infância velhice

bilhões de coisas que nos levam a isto

não somos vítimas apenas

somo causadores do nosso próprio mal

temos senso de dever

buscamos decência

temos consciência

estamos certos de que estamos certos

a mentira já foi repetida tanto

mesmo que ela não seja verdade foda-se

temos que ter fé

7.2.07

98

o mundo nunca muda

de vez em quando acontece alguma coisa

ó pensamos isso foi grande isso foi explosivo

juntam-se os pedaços

é o mesmo quebra-cabeça

o novo é velho

meu palpite é de que sentimos assim porque quando em nossa mente surge a razão ficamos tão fascinados que nutrimos a certeza de que cada descoberta que viesse em seguida seria ainda melhor

não foram

descobrimos a falta de transcendência

transcender virou mero exercício intelectual

uma coisa sem corpo sem nervos sem rosto

então tivemos que admitir

a razão não passa de um sucedâneo muito do sem graça

com que cultivamos nosso narcisismo de espécie e infernizamos a vida

nossa e dos outros

montes de imperativos e erros justificados

6.2.07

97

todos os que se enchem de dinheiro e depois vão à televisão dizer que só o amor constrói

só o fazem pois assim ganham mais dinheiro

todos que acreditam no homem

acreditam porque a crença é rentável

todos que invocam valores sublimes e abstratos são infinitas vezes mais capazes de empenhar toda sua energia na conquista de luxos concretos e terrenos do que na expectativa de uma vaga no paraíso

qualquer um pode viver sem deus e sem amor

nunca sem teto e sem comida

mas daí vem a conversa de que deus está nos testando

e chegamos à conclusão de que ele nos fabrica em série e nos larga aqui para fazer uma prova prática

isto aqui não passa de um controle de qualidade

e se deus fosse por nós testado

bom a meu ver ele já teria ido para o lixo

se não pelas características intrínsecas de sua pessoa

ao menos pelas hordas de bocós que ele criou e que se apropriaram do mundo a puxar-lhe o saco

5.2.07

96

ontem talvez eu tenha parado com algum de meus vícios

o tempo dirá

foi uma das raras vezes em que me cansei de ser corrompido

nem sei com quê

cansei-me apenas

e sinto que com isso não ganhei nada

sinto cada vez mais frágil meu elo com a vida

sinto a indiferença do cosmos

vivo ou morto aqui ou lá

tanto faz

o desnorteio é quase uma tentação

a vida escapa entre meus dedos como água

e dela só me resta uma parca umidade na palma da mão

preciso lambê-la lambê-la muito antes que evapore

antes do desabamento

antes da passagem do rolo compressor na avenida

antes da explosão

quem sabe quantas gotas não haverá sob as pedras

lambendo o chão as paredes as solas dos sapatos sobrevivo para assistir ao banquete alheio

4.2.07

95

talvez eu esteja aceitando este abismo como minha condição de ser

isso não significa maturidade ou superação

apenas é mais ou menos como saber o prisioneiro que as grades de sua cela são feitas de aço

durmo e sempre que desperto

percebo que continuo no sonho mau

o sonho em que todos os passos devem ser medidos

pois nele nunca sabemos onde pisar

só ao cair percebemos ter estado a andar na parede ou no teto

não sei por que efeito de edição

mas saber disso depois que se cai é igual a morrer ignorante

vamos desespere-se enlouqueça suplique

o velho louco precisa muito se divertir

se não foi para isso que ele criou toda esta palhaçada

3.2.07

94

quanto mais quero desfazer os nós mais a linha se enreda

mais vidas se prendem à trama

nada tenho além desta escravidão

a vontade há muito se foi

o tempo me consome

e eu com minha lucidez mesquinha

percebo que sou roído

que a morte

como uma ratazana faminta

cava seu ninho em minhas entranhas

a morte

que desde minha mais tenra infância adorna minhas fantasias

tudo que tenho é esta suposta capacidade de simular pensamentos profundos

que tão bem ludibria os rasos

se ao menos eu soubesse olhar de frente para os fatos

mas ainda estou brincando

ainda sou o menino perverso e desmiolado sob a carcaça velha e gasta

que não crê no bem

2.2.07

93

tudo que temos para aprender deste mundo

aprendemos nos primeiros anos de vida

se aqui permanecemos depois disso

é só para tirar a prova de que o que aprendemos era mesmo verdade

era

será que não podemos aceitar o fato

o mundo pode ser uma merda

ele pode ser injusto cruel desigual e o caralho

mas ele não mente

nem negocia

se na tenra infância algo lá dentro lhe dizia esse troço não vai dar certo

melhor que você acreditasse

realmente não ia dar certo

melhor que deixasse para lá e renunciasse a essa infinidade de passos errados

mas não

você quis experimentar

deixemos como está para ver como é que fica

ficou pior

e ficará cada vez mais

pior que um jovem indigente só um velho indigente

mas você insiste

1.2.07

92

não há mais tempo para paixão

quem sabe haja força para narrar o desmoronamento da ruína

o milagre não veio

simplesmente me consumo

e não quero aprender mais porra nenhuma

estou farto desta merda de aprendizado

aprendi que sou pobre e não sei ser pobre

aprendi que preciso trabalhar e odeio trabalhar

aprendi que devo amar sem esperar nada em troca e odeio entrar em qualquer coisa sem certeza de ganhar

aprendi que gosto de ganhar muito mais do que ganho

aprendi que o prazer de vencer é uma sensação infinitamente menor que a dor de perder

aprendi que não sou o único que pensa assim

e que a bondade quase sempre é uma cortina de fumaça para sentimentos mais baixos

aprendi que existir é penoso

que somos escravos da existência

e que pouquíssimas coisas me confortam mais que a dor alheia