31.12.07

425

fui atravessado pelo turbilhão

fiquei assim

nem sei em que condição

talvez isto até seja a felicidade

mas sinceramente não me sinto feliz

ainda creio na fera

ainda espero sua visita

ora eu precisava formular minhas suposições

sei lá imaginei assim

vimos ao mundo para ser devorados amém

não sei se é mau

não sei se é essa a causa de meu medo

medo que me enche de vergonha

tenho vergonha de minha covardia de minha crueldade e de minha ternura

sinto-me a mais elementar forma de ser

simplesmente cumprindo um inevitável impulso

isso que chamamos de instinto

e algo ainda mais oculto

mais primitivo

algo que não se abre a discussões

que age independentemente de mim

que talvez seja eu

e eu só um apêndice

30.12.07

424

quem procura ser feliz

evidente

não é feliz

suspeito que felicidade não se procure

tem-se

ou foda-se

seja feliz com sua infelicidade

seja o que você puder

pois querer você não quer

não mesmo

nem que quisesse querer

nem que sei eu

você anda

ou pensa que anda

só por sentir o atrito da vida

saber vá alguém

é tudo questão de extremos

de luz e de treva

toda hora me cego

presumo propósitos

se acaso eu me conhecesse

então encolho-me

penso

assim não me encontrarei

para quê caralho

deixe como está

já está satisfatoriamente péssimo

para que mudar

já sei que se houver vida após a morte

cagar-me-ei de pavor da morte mesmo depois da morte

ainda que deus me quisesse

queria não querê-lo

já sei que não há liberdade

29.12.07

423

como sempre tento ficar em dia

como sempre fico em atraso

como sempre fico

sei lá se fiquei a bem dizer

ou se fui levado

não exerci meu ânimo próprio

isso sei

só não conto

ora não sou o único

e não sei se faz tanto mal assim ser canalha

sei lá se deus ou se o diabo

não há resposta do outro lado da linha

enquanto daqui não consigo parar esta voz

meu deus do céu saia de minha cabeça

ela não pára

e eu gasto papel

a mudez morreu junto com a voz

é assim que se fica

tartamudo

abobado

e a coisa ainda não acabou

só falta eu ser eterno

um eterno brinquedo de alguém

só falta

ser sempre

alheio

na idiota crença de ser eu

28.12.07

422

outro dia eu delirava em significações

minha nossa pensei que ia escrever o mundo

porra nenhuma

não passo de rastilho curto fino e fraco

nem fogo pra palha

olhei a folha de papel e babei

pensei só penso em coisa idiota

mas como gostamos de nos enganar

em certos momentos esta fera dentro de mim

que quer viver a todo custo

conta-me as mentiras mais idiotas

em que acredito sem pestanejo

ela não passa de mim

tentando deixar-me

livre

criando-me um repositório

de culpas

como se não fossem minhas

como se a fera faminta

tivesse vindo do além

e eu pobre vítima

escolha do acaso

servindo de morada do mal

servindo a sua lasciva lubricidade roufenha

eu esquizofrênico manso

engano legal

27.12.07

421

todo dia é hoje

repetindo-se além da exaustão

infinitamente até que finde nossa infinitude

e os dias prossigam sem nós

iguais

como os loucos

que todo dia

na mesma hora

dão o mesmo grito

da mesma janela

do hospício

da mesma espécie

de cubículo

onde o tempo

passa

às ocultas

como nada

e um dia venha a voz

ou só o fato

fodeu-se

defunto és

ora tudo que tenho a fazer é morrer

é a única alternativa à vida

não entendo por quê

mas dentro de mim correm emoções

quiçá mera química

quiçá quimeras

quiçá deus o improvável

a bem dizer correm em mim sensações ou qualquer porra assim que digo advir de sentimentos

mas sei lá se são

invento o sentimento depois para dar substância à sensação vazia que o precedeu

que sei eu

26.12.07

420

aqui estou eu

demorando para ver

o que aos olhos de todo o resto do mundo

eu e meu triste hábito da tristeza

eu e minha sina de ser eu

eu que desconheço os limites do existir e que tenho medo de encontrá-los

e de então descobrir que deles não queria ciência

não sei se um selvagem ingênuo é feliz

ao menos é um selvagem ingênuo

nem feliz nem triste nem sóbrio além da conta

não lembra nem esquece senão o que aconteceu

não se diverte com manipulações

talvez ele fique mais exposto às maldades de deus e seus filhos

decerto

mas a maldade diminui quem a pratica

como é horrível ser um repositório de ódios

25.12.07

419

papel e água

coisas que sempre se pensou haveria para todos

o mundo duraria para sempre

para sempre haveria espaço na atmosfera para suportar a peidorrada deste monte de veículos

tudo sempre para sempre

até que a eternidade acabou

toda eternidade sempre acaba

e quando a eternidade acaba

aí sim seu fim é eterno

nada é mais eterno que o nunca

a eternidade nunca

nada me tira da cabeça esta idéia

de que a eternidade gosta de mim

defunto

no fim

sempre tão rigorosamente igual

mas tanto

que até as diferenças são idênticas

e eu que sempre me cri tão extenso

começo a ver que não passo de um cubículo

minúsculo

ocupado por um ser muito pequeno

24.12.07

418

estou cansado de construir um mundo segundo a minha mente

estou cansado de viver condenado a me mover eternamente

sou velho

sempre o fui

e imaturo

sempre o serei

não sei quando virá a morte

mas quando vier será só uma confirmação

de que já estou morto

e de que morro de medo do que já sou

não surjo não existo não sou visível

não sei nem mesmo como se dá este fenômeno de me crerem aqui

de eu me crer aqui

não tenho expressão alguma

muito menos inteligência

ou emoção

ou prazer

ou desejo de ter qualquer dessas coisas

só queria esquecer

da vida de mim dos outros do amor da paz do ódio da beleza

enterrem-me

enterrem-me bem fundo no meio do mundo

ou me deixem por aí para feder

tanto faz

seja a fedentina meu legado aos que são burros bastante para me invejar

23.12.07

417

viveremos na merda

caso seja na merda que os deuses nos queiram

viveremos como eles quiserem

seremos qualquer porra que eles queiram

com a estranha sensação de que melhor estaríamos abandonados

melhor sem nos sujeitar à crueldade sádica do senhor de tudo

deus nos odeia

ou nos é indiferente

dá na mesma

algo teremos feito

para ele nos manter aqui

dentro desta caixa

sua caixa de brinquedos

que ele abre e esparrama pelo chão impiedosamente

pisa cospe mija em cima

é um louco

mas um louco poderoso

que devemos reverenciar

se somos suas reproduções fiéis

deus é uma fonte de tristeza

que só nos criou para extravasar toda a iniqüidade que morava em si

deus é o mal

a maldade em todos seus possíveis desdobramentos

deus cria coisas boas e belas só para destruí-las e massacrá-las

deus não tem piedade

o caso é que ele não sabe ser hipócrita

isso é atributo nosso e apenas nosso

22.12.07

416

não gosto de sonhos que se realizam muito tarde

costumam ser o vestíbulo da morte

o passo para o precipício

o abismo convidativo

desarma-nos e senta-nos uma paulada na cabeça

ou pior

não gosto mesmo disso

melhor subir no telhado em meio a um pesadelo

pois se a morte for um pesadelo

ao pesadelo já nos teremos habituado

e se a morte for um sonho paradisíaco

então nos sentiremos gratos por nos livrarmos do inferno

e temeremos a vida

como a vida deve ser temida

como a vida deve ser evitada

o inútil desgastante tedioso doloroso labirinto

a inútil eterna espera

o poço dos desejos pegajoso soturno

e então o anseio de larga data se cumpre

fique certo meu chapa

é caixão

a vida não pode ser tão boa

nunca o será

viver é mastigar bem fundo todo dia a erva amarga da existência

seja feita vossa vontade

21.12.07

415

como sempre não saio daqui

nem sei que lugar este é

que eu saiba nunca estive em outro

mas também que sei eu

sempre aqui

mesmos pontos de vista

mantidos não por fé

e sim por ignorância

caso este seja o dia de minha morte

direi não vivi

não vi

não fui mais do que eu

talvez nem mesmo eu eu tenha sido

e no entanto atribuí tanta importância a mim

tanto temi a morte e as privações

sei lá que fração de mim sou

presumo que a mais angustiada de todas

a mais chata

aquela em cuja testa foi escrito não há nada de interessante para se ver neste mundo

e tenho que ser isto

vivo dentro de grades

grades que sou

cuido para nunca me dar oportunidade de evasão

entre paredes de mim

para onde quer que eu olhe

saco

labirinto sem graça

e assustador

20.12.07

414

o tempo é um fato

esta coisa que não pára de acontecer

a passagem de tudo

apesar de tudo ser relativo

dizem

o tempo é a coisa mais absoluta que conheço

estou alguns bilhões aquém da velocidade da luz

bilhões sei lá de quê

de um troço grande pra caralho

e preciso correr

além dos limites dos batimentos cardíacos

para morrer dizendo ao menos tentei

embora soubesse que nada conseguiria

o tempo passou

as pessoas passaram acenando da janela do ônibus

talvez me achando graça

decerto

e eu um ponto minúsculo na paisagem

a diminuir

já começo a imaginar como ficarei dentro de um caixão

de nada vale pensar nisso

não me faz nem mais vivo nem mais morto

só mais ansioso

só mais tonto

como se já não bastasse

só mais sem tempo

19.12.07

413

toda obrigação é chata

horrivelmente

fruto de sentimento que morre

como é dos sentimentos

mas a bendita obrigação permanece

aquele pacote num embrulho sem vida

que deve ser aberto

todo dia

a vida

e sua complexa monotonia

o tedioso labirinto

aquela coisa de sempre

respirar dormir comer

ser cortês com os superiores e estúpido com os inferiores

amar e odiar a deus e à pátria

casar e cagar crianças

trabalhar

o que não tem forma e o que é deformado

tudo deve caber num lugar exato

para que o dia

e as obrigações

sejam cumpridos

sem deixar de ser compridos

de modo tal que cada segundo pareça infinito

que cada movimento

tenha

mais

de

estático

que de móvel

como se tudo nunca mudasse

nem morresse

18.12.07

412

as palavras muitas vezes se escondem por trás de um grande muro

oculto

e lá o idiota

a pensar que é tudo um mundo só

e que tudo está a seu alcance

simplesmente por não saber distinguir aberto de fechado

simplesmente por ser cego

tão cego que nem sabe que é cego

nem sabe o que é bonito e o que é feio

nem lembra que também se pode não ver de olhos bem abertos

e lá está o muro

entre as palavras e mim

descoberto pelo tato

quando nele dei com a cara

mas aos olhos o que se me mostrava

era uma linda vista

ampla paisagem

em busca da qual parti correndo

até que a sensação tátil

desmentiu meus olhos

caí sentado diante da parede

inflexível

irretratável

sentado fiquei a pedir esmolas

tendo minha desgraça por arrimo

17.12.07

411

não sei por que ganhei esta mordaça

talvez apenas por me saberem frouxo bastante para aceitá-la

e o interessante é que ela não me impede de falar

só não deixa os outros me ouvirem

curioso

talvez por isso esta voz dentro de mim

incessante

ininteligível

talvez seja eu

talvez deus

ou quem sabe seu parceiro

quem seja

como eu gostaria que calasse a boca

como seria bom fechar os olhos e não ver nem ouvir nem sentir de modo algum a recriação do mundo em mim

mas parece que sou apenas uma passagem

entre dois compartimentos de uma mesma coisa

o fora e o dentro de mim não são eu

talvez eu seja assim

não sendo

talvez eu deva aceitar a inexistência e me alegrar por ser só um obstáculo entre o aquém e o além

16.12.07

410

esta monomania

esta febre

estes espasmos

como me dói a cabeça

bilhões de gentes no mundo

bilhões de mentes

e pelo menos um bilhão

se não todos os bilhões

assim

possessos

de uma ganância alucinada

só vendo o valor econômico da vida

sem dúvida por ele somos medidos

comida casa e roupa são importantes

mas ao homem não basta saciar o corpo

ele tem a alma

que o faz divino

e por isso ele deve transformar os meios de proporcionar conforto a todos

em fontes de conflito

para que poucos tenham glórias e as arrastem

marcialmente

em torno da praça do coreto

diante dos montes de fracassados

nada faz ninguém melhor aos olhos de ninguém

salvo o excesso de riqueza

a ostentação suntuária

15.12.07

409

estes dias de ócio

em que tenho de ficar conversando comigo

como se isso fosse novidade

que demora

que desperdício

esta imobilidade

esta sedimentação

coisas se depositam no fundo de mim

por minha garganta vez e outra sobem os vapores ácidos de minhas débeis maquinações

faço-me de triste

fácil fingi-lo porque o sou realmente

quem dera fosse minha única mácula

além das dissimulações

até hoje não sei quando digo a verdade

talvez este seja um jogo em que todos percam

ainda acho pior ser só eu a perder

todos os olhos em mim

mas é tão rápido

tão de passagem

todo mundo gosta de desgraça

ninguém gosta de desgraçados

este o nosso mundo

esta a nossa espécie

14.12.07

408

das tristezas lembro-me com raiva

das alegrias

com tristeza

das raivas

com uma espécie de sociopatia

e do futuro tenho suores noturnos

nem percebo que percebo

mas sinto quão nada sou entre o gigantesco e o ínfimo

só tendo a mim para compor meu mundo

sendo uma coisa no meio das coisas

e delas me sentindo separado

sempre me achando fora

de mim e de tudo

como vim parar aqui

até crer-me alucinação

e delirar tão frio

quase não grito quando não durmo

era só um pesadelo

agora é o real

ora quantas vezes ainda poderei sentar aqui

e descrever o cotidiano de minha falta de senso

todos os caminhos levam à raiva

e é nela que está escrito meu epitáfio

uma pedra já quase desfeita de tantos entalhes

13.12.07

407

mesmo que eu resolvesse contar tudo

ainda restaria algum crime oculto

simplesmente porque não dá para lembrar de todos

e olha que muito longe de mim ser um grande facínora

sequer um médio

o pouco que fiz simplesmente basta para me dar estas lembranças

ainda que incompletas

vastas

capazes de encher anos de minha vida sem trégua

é como eu soube me fazer inesquecível para mim

mesmo querendo me esquecer

soubesse quão indeléveis as lembranças

o passado ou se esquece

ou é presente

eis toda memória

tudo que fui ontem sou hoje

vívido

sou o próprio registro autêntico de meus feitos

este olhar fugitivo

este gesto de querer guardar minhas mãos em meu peito

e o envelhecimento que tomou conta de meu cérebro

não quero voltar atrás

na vida não há volta

só queria não seguir adiante