31.8.07

303

existir é uma penitência

que aceito cada vez que deixo o ar entrar em meus pulmões

porque embora saibamos que nossa morte é somente uma questão de tempo

no fundo nutrimos a esperança de que

se ficarmos aqui uma eternidade

um dia as portas do céu se abrirão

ninguém aceita pacífico o fato ou a possibilidade de que depois daqui nada

nosso deus é isto

a preservação de uma individualidade que nem é tão interessante assim

apenas supomos nossa

motivo suficiente

não temos espírito coletivo

mesmo que o tivéssemos

ele se limitaria a nossa tola espécie

que só conhece o poder destruidor

a força das ameaças violentas

e vive falando nessa porra de deus

deus pra lá deus pra cá deus isto deus aquilo

o ser humano é um porre

30.8.07

302

máquinas de blablablá

criando discursos a pretexto de transpor a emoção e unicamente despertar a razão

como se houvesse razão e emoção dissociadas

como se a razão não fosse a expressão de um estado emocional

como se o homem não fosse a coisa mais oca e pretensiosa deste mundo

e sim o grande descobridor da verdade suprema

lá está ele

no fim de sua gloriosa trilha de morte

toda feita das carcaças que ele abateu e não pôde devorar

as que ele matou apenas por precaução

apenas para preservar sua pequenez de alma

este ser que diz conhecer o sagrado

que vive certo de que a divindade o ama acima de todas as coisas

e então ele pega e desanda a falar falar falar

ou por outra a matar matar matar

eis os talentos da criatura divina

além da criação de umas maquininhas que a ajudam ou a matar ou a criar discursos

29.8.07

301

será que a dor e o arrependimento cortante fazem parte da felicidade

e o único problema nesta história toda

é que não estou sabendo integrar os estados

será possível que as coisas estejam indo do jeito devido

e só eu não saiba disso

será que algum dia serei imune a mim e a meus caprichos

a vida é estúpida

a vida é estúpida

porque há um estúpido a vivê-la

tudo na vida leva séculos

infindáveis

para acontecer

e para deixar de acontecer

como a dor alheia não nos dói

só lembramos da dor quando a sentimos

e tamanho é o desespero de senti-la

que não hesitamos em transferi-la ao primeiro inocente ou culpado

que cruze nosso caminho

a partir de então a dor será alheia

é tão fácil conviver com isso

sempre será

enquanto eu for condenado a mim

28.8.07

300

soltaram a fada louca

ela está por aí agindo

fazendo o bem a quem faz o mal

que são os empregadores do papai noel

dentre outros

aqueles para quem tudo são oportunidades de se dar bem

tudo serve de motivo para fazer idiotas comprarem presentes

para se reconciliarem

para dizerem que se amam

para obterem vantagens

pouco importa

o que vale é dinheiro em caixa

por obra de deus ou do diabo

somos todos filhos dos dois

todos temos direito a uma fada para olhar por nós

uma que esteja de acordo conosco

por isso que existe a fada louca

a mais correta das fadas

aquela que olha antes de tudo se a gente não presta

ela é uma fada bem poderosa

veja quanta gente má desfruta o que de bom e de melhor

veja a fada atendendo sua clientela

melhor que qualquer fada sã

27.8.07

299

a vida não espera que esgotemos nossas dúvidas

se temos dúvidas vivemos com dúvidas

que mais dizer

é assim e pronto

engula

agora é tempo de ficar velho

de sentir novas dores

de esquecer

dizem haver algo eterno em nós

não é a felicidade

talvez seja o arrependimento

ou a culpa

talvez não dê para eu demonstrar meu ponto de vista

como seja isso não mudará o ponto de vista do destino

nem me fará abandonar esta busca desesperada e infrutífera

quem sabe o eterno seja o conflito

ou deus com seus ouvidos moucos

e nós com este sofrimento insuportável que vamos suportando

nunca pensei que teria tanto medo

nem acho possível tamanho pavor a não ser quando o sinto

vivo cada vez mais no passado

procurando fazer do presente uma sombra e do futuro um defunto

26.8.07

298

eis um domingo sincero

cinzento e abafado

a cara que muitos domingos procuram esconder

como é chato viver

especialmente num domingo

o dia em que as famílias se matam com mais carinho

o dia em que se dorme a tarde toda

e depois vem a noite

e ficamos na cama

despertos como uma lâmpada acesa

pensando

enquanto o resto da humanidade dorme

enquanto o resto da humanidade é feliz

ou pelo menos finge ser feliz com mais talento do que eu

domingo serve para termos saudade do que nunca tivemos

domingo

silêncio na cidade

porém sem sinais de paz

domingo é o dia em que vou morrer

o que não é de todo mau

num domingo o melhor que se faz é morrer

25.8.07

297

hoje é um bom dia para não se viver

acordei farto de desconfortos

súbito não era bom nada do que considero bom

de repente tornou-se insuportável ser escravo de mim

sádico e vingativo como sempre

deus criou o prazer e a dor

na razão de um para um milhão

como é bom comer de se empanturrar

como é horrível depois a longa e acidentada digestão

como é bom beber cerveja gelada até arrebentar

como é horrível depois a ressaca

como é bom dar uma trepada

como é péssima a gravidez indesejada

realmente ficamos esquecidos aqui

idiotas ignorantes vulneráveis e violentos

existência

ninguém nunca imaginou castigo mais cruel

existir nesta fantasia macabra

em que tudo nasce e morre e quando não nasce nem morre

mata

24.8.07

296

eis uma manhã sem palavras ou melhor

sem idéias que recheiem os recipientes despejados nesta folha

nesta manhã

neste dia

nesta vida

mas é assim

os lados para que as coisas vão

nunca são os esperados

muito menos os inesperados

simplesmente andamos de um jeito

que é a nossa cara

quer se goste quer não

viver é uma escolha estranha

que só não parece mais estranha por haver um monte de doidos que fizeram a mesma escolha que a gente

a cada bilionésimo de milionésimo de segundo deve se buscar um sentido para se atribuir a este raio de vida

e o único sentido que me parece cabível é o prazer

tão raro que quando o tenho temo discuti-lo e assim perdê-lo

de resto o negócio é ficar sentado no meio-fio catando pedrinhas que se desprendem do asfalto

e deixando-as cair da mão

enquanto o sol vai e vem

23.8.07

295

de terror e de ternura se faz a vida

não sei se um dia vou me acostumar a isso

não sei se devo

acordar ora na noite ora no dia sem saber onde

e até perceber se os olhos vêem ou não vêem

trombar de frente com criaturas as mais estranhas

desejar a cada erro nunca ter cometido o erro de existir

e que nem tudo fosse a rotação nauseante deste carrossel desenfreado

se eu gostasse do jogo independentemente de ganhar ou perder vá lá

mas ninguém joga por jogar

ninguém vive por viver

não que saibamos para que estamos aqui

quem sabe para nada

tão-somente vivemos a buscar sentidos

que não nos basta um

sentidos queremos de reserva

que esta vida é uma guerra

pletora de sentidos

a fim de que nunca faltem explicações para este desatino de viver

peça do quebra-cabeça que não encaixar vai para debaixo do tapete

no mais tudo bem

22.8.07

294

de início parece tudo indistinto

surgem entretanto as diferenças

o que não tira do todo a cara de mesma bosta

acho que é a necessidade de permanecer vivo

e de esquecer que não há artifício contra a morte

não há dor que a supere nem alegria que a diminua

vou deixar este mundo sem ter sido nem infinitésimo do que quis

deixar o mundo sem ter sido feliz

rimas acontecem

não adianta dizer que me arrependo

o mundo é implacável

a vida

um fato cruel

não acredite nela

simplesmente use-a

desperdice-a da maneira que bem lhe prouver

pois a vida é um desperdício

é vir sem saber de onde

para ficar sem saber como

e ir sem saber a hora

você pensa que fez três bilhões de coisas só por estar aqui

e quando dá por si vê que se tornou mais careca e mais burro do que quando nasceu

você engoliu a conversa mole do mundo

deixou-se levar

culpe-se

21.8.07

293

tempo é tudo

e passa

como se só eu o notasse

o tempo de que falamos nunca é o presente

não pára

assim como nós

ainda que inteiramente estáticos

somos passageiros involuntários da viagem do tempo

ainda que sejamos capazes de fechar os olhos por toda a eternidade

o tempo não nos esquece

nem nos lembra

se ainda é tempo

se ainda podemos cometer desperdícios

se ainda vamos fabricar o passado por muito tempo

sem querer admitir

que somos parte de uma seqüência cega e aparentemente infinda de nascimentos e mortes

parte de um sentimento cego de luta pela vida

luta virtualmente sem limites

que não mede os sacrifícios alheios

como se isso nos desse mais tempo

ou nos fizesse dele esquecer

como no caso dos corpos em putrefação

se não os vemos

eles não existem

ou existem menos

20.8.07

292

se há algo que meus pais me ensinaram

é que nunca devo andar sem um tormento

seja para dá-lo a quem precisa

seja para meu eventual uso

no caso de todos os que carrego me abandonarem de uma hora para outra

o que me tornaria mal visto perante os outros

ande sempre com uma sombra

combata a paz por todos os meios

não esmoreça

não deixe o mundo ceder à tentação de ser feliz

mais vale um inferno na mão que dois céus voando

mais vale o pássaro morto no espeto

que dois voando a colorir o mundo

temos de estar à espera de problemas

que são coisas duradouras

enquanto as soluções são sempre passageiras

19.8.07

291

condenado ao calor

inferno

merda de clima tropical

pior quanto mais perto do mar

o mar e seu fedor

o mar e sua salinidade pegajosa

o mar e seus turistas

afora os enfastiantes autóctones

que fingem diante dos estrangeiros ser o máximo viver na beira do mar

minha nossa como é chato viver na beira do mar

longe do mar ao menos me sinto menos sem caminho

menos entalado num tubo úmido viscoso e estreito

como o ar da beira-mar

como deve ser o ar da amazônia

com aqueles rios

e aquele monte de plantas e a linha do equador e a temperatura permanentemente acima dos trinta e os insetos as coisas rastejantes e a escuridão do interior da mata

caralho acho que vou vomitar

natureza em excesso enche o saco

18.8.07

290

quão mesquinho o prazer

a bem da verdade

sei lá se é o prazer

mas algo há de mesquinho no meio disso tudo

parece que algo que nos nega a paz

que caso exista

decerto é o prazer supremo

o único possível

não a simples inexistência de conflito

mas o absoluto poder de ligar e desligar o jorro das emoções

a inexistência de desejos absolutos

a capacidade de enxergar um passo adiante de meus erros

por não viver pensando que tudo sobe ou desce para sempre

poder acabar com o falatório dentro desta cabeça

e quiçá ter um contato direto com o mundo

se é que isso existe

não viver mais sujeito ao torpe assédio divino

nem atormentado por suas insossas tentações

simplesmente paz

simplesmente silêncio

simplesmente saber com o coração o que é sentimento

se é que isso existe

e não pensar sobre isso nem de brincadeira

nunca vou encontrar deus

espero

17.8.07

289

deus e seus prazeres doentios assustadores

criar coisas pequenas belas delicadas e destruí-las

deixar-nos cair na armadilha da compaixão e do amor

levar-nos a crer na razão

deus e sua apavorante imaginação

suas igrejas sombrias

seus fiéis com cara de lápide

deus assustador

deus assassino frio e cruel

deus que zomba e tortura

deus que favorece poucos só para se divertir

vendo quanto de sua pequenez permaneceu em sua criatura

e os poucos que deus favorece ele os deixa brincar de deus até puxar-lhes o tapete dizendo-lhes

qual é neguinho

deus é só um

e continua deus a renovação de seu ciclo de miséria e miséria

de nada vale odiá-lo

de nada vale amá-lo

somos-lhe absolutamente indiferentes

mortos ou vivos

odiando ou amando

uns se estropiam

outros se dão bem para depois se estropiarem

deus é amor

só não sei a quê

16.8.07

288

mais um dia trombando em paredes abrindo portas erradas metendo a cara no poste

e quando nada acontece

transpiro

muito além do necessário

à espera do desastre seguinte

questão de tempo

sempre esconder a ferida aberta

explicar o que não é da conta de ninguém

é a mesma armadilha no mesmo lugar com o mesmo disfarce

e todo dia caio nela do mesmo jeito

já não distingo o igual do diferente

15.8.07

287

a felicidade exige sacrifício dor tristeza e credulidade

o mundo nos oferece o caminho

o salto no escuro

dizendo que lá no fim ela se encontra

aquilo

que palavras não constroem

que muita vez sequer aparece no horizonte de uma vida inteira

mas aceitamos o risco

tamanha a ganância

tamanho o desespero

de tal modo que já nem se lhe poderia chamar simplesmente desejo

loucura seria pouco

na verdade não há palavra que de longe pinte o quadro da patética busca do homem pela tal da felicidade infinita

ou coisa que o valha

que torna infinda a frustração

que causa tanto ódio

e do ódio tanto medo

e então veneramos a coisa chamada deus

nosso fetiche favorito

o regozijo que nunca

nossa forma de dar as costas para o fato de sermos feras num mundo de feras

de esquecer que quando não predamos somos predados

e que nunca seremos diferentes

14.8.07

286

mais um dia para o baú da incompreensão

mais uma vez

quem sabe uma oportunidade

quem sabe uma coisa que nunca será o que pensei

mas apenas o que se apresenta diante de meus olhos

quem sabe quando chegarem as chuvas

e todos olharem menos para fora de casa

quem sabe na época delas

fiquemos todos em casa e descubramos o valor do silêncio

e esqueçamos de buscar na rua o que não encontramos em lugar nenhum

paremos de fazer aos outros o que não faríamos a nós mesmos

paremos de dormir de olhos abertos

ninguém está vivo e alerta

se estivesse não se deixaria levar por promessas que nem lhe são feitas

mais um dia para trombar em paredes no escuro

para se ferir e não ter de quem reclamar

não basta acreditar que tudo vai dar certo

a felicidade é muito rara

ninguém a deixa dando sopa na rua

13.8.07

285

tudo na mesma

a velha atarantação

gente por todos os lados

e no meio de tudo

caso haja um meio de tudo

o idiota de sempre

com a velha interrogação na cara

uns bons quilos de carne gorda

alguns metros de osso

litros de sangue

basicamente

e a expressão de criação suprema que não sabe o que faz

isso talvez tenha algo de próprio

é a própria idiotice

não saber o que fazer em ocasião alguma

tudo que ele fizer será idiota

talvez casualmente adequado

casualmente delituoso

casualmente benemérito

vive-se em suposições

supõe-se que sempre de tudo se sabe

supõe-se que o medo é bom conselheiro

12.8.07

284

como é sem poder a palavra

como nada muda quando se articula o verbo

a palavra simplesmente registra o fato quando o que eu queria era modificá-lo

mas a palavra não é capaz de nada

por mais que eu fale

nem por isso

nada muda

não sou feliz

não sou rico

não sou atraente

os caminhos são todos fechados

morrerei nesta vala comum da pequena bem pequena mesmo burguesia

ninguém

se ao menos deus me poupasse dos sentimentos

se ao menos eu não vivesse soterrado pelo mundo

aguardando o próximo obstáculo que venha reforçar em minha mente a certeza inabalável de que sou fraco

de que sou ninguém e de que ninguém liga a mínima para isso

as mútuas ofensas

as recíprocas flagelações

que diferença faz a existência ou a inexistência de qualquer coisa

meu desespero continua o mesmo

11.8.07

283

estamos todos aqui

escondendo nossas misérias o melhor que podemos

pisando em nosso próximo da forma mais veemente de que somos capazes

deixando pelo caminho o velho rastro de morte e destruição

e no entanto tudo que queremos é que o mundo seja bondoso conosco

e às vezes até encontramos a bondade

claro que ela sempre termina decapitada

o triunfo do mal é a vontade suprema do criador

mas a bondade está por aí

e dependemos de nossa sorte para encontrá-la antes que deus a veja e a extirpe

e no fim das contas

apesar de tudo

apesar de todo o poder do mal

que sempre sempre vence

o que nos toca

o que nos faz querer bem

o que nos faz esquecer o fardo representado pelo papel de viver neste mundo podre sendo títeres anulados desse deus doentio

é a bondade

que tanto desprezamos quando não nos beneficia

10.8.07

282

vá entender os prazeres de deus

bater em muitos e apanhar de uns poucos

vá entender essa mente

a cuja imagem e semelhança

vá entender todo este sangue

este monte de vida e morte

este monte de miséria

e um monte de babacas fudidos venerando o mané

vá entender o poder

e quem se lhe submete

vá entender deus e sua insaciável maldade

e seu interminável desejo de vingança

o mesmo que eu dizia a meu pai digo a deus

se respeitar é ter medo

então eu o respeito

e odeio

quanto maior o poder menor a compaixão

eis a lei divina

e afinal os cálculos são feitos para as multidões pelos poucos que decidem

um a mais um a menos

9.8.07

281

não sei se terei saudade da infância

que eu me lembre foi tudo cem por cento merda

se tivesse de definir em uma palavra

diria humilhação

humilhei humilharam-me humilhamos

talvez quando eu fique ainda menos lúcido

venha a maldita saudade daquele inferno

não duvido nada

mas esse é um momento muito distante

de meu sentimento

só tenho saudade

muita

de quando eu era nada

nem ovo nem registro

como era bom

eu não ficava nem triste nem alegre

não desejava nem repelia

eu era um cara gente boa pra caralho

não perturbava ninguém e vice-versa

como era bom ser nada

viver à deriva ou ancorado

tanto fazia

tudo era nada

8.8.07

280

dentro de alguns dias minha vida continuará a mesma bosta

mas todos pensarão que terá mudado

inclusive eu

que tenho certeza do que virá depois

e depois

e depois

nada

vezes nada

mas continuarei procurando aquilo que os outros me dirão sem sombra de dúvida possível alguma que absolutamente deveras aconteceu

ó sim mas claro

só não vê quem não quer

e sentirei a culpa

e cultivarei a vaidade em lugar da verdade que a bem dizer em minha vida não passa de virtualidade

desde que haja aplausos

e dinheiro

creio que aceitarei bastante bem

com muito gosto até

o simulacro

ficar aqui

parado

como o burro defronte da catedral

como a loira diante da enciclopédia

se viver é consumir energia

vivo

se não

enterrem-me quando eu não for mais capaz de resistir

7.8.07

279

como como

o medo me faz comer

a coragem também

a alegria a tristeza

tudo

olhem-me na foto

estou comendo

comendo feito um padre

feito uma draga

feito uma voragem

comendo

sem dúvida

desesperadamente

sem dúvida

sensaboria

sem dúvida

como até o ar

atrás de um conforto que não há

não me lembro de quando não estive comendo

e quando me farto

quando me encho até a tampa

penso como agora

penso em como seria bom não comer

como seria bom ser feliz

como seria viver sem a voragem

e os quilos

e a incerteza

e os comentários

e o terrível peso

que mora aqui dentro

como seria deixar tudo para trás

e viver satisfeito com as medidas de meu esqueleto

como eu poderia deixar para trás esta parte de mim de tão notável expressão volumétrica

6.8.07

278

não sei o que esperar da vida

senão mudança

quanta não sei

em geral tão pouca que tudo fica a mesma bosta

mas sempre há o medo

parece melhor que nada

a tristeza dos dias

as coisas passando rápido demais

e eu esquecendo esquecendo que não devia esquecer

que não devia ter chegado aonde cheguei

que o melhor fruto estava num galho muito alto

todos precisamos entender a importância de estarmos no mundo

talvez seja nenhuma

talvez não tenhamos que ser perfeitos e saber o que está por trás de todas as portas

talvez tudo simplesmente acabe

pronto

e não haja absolutamente nada depois

maravilha

e nós aqui pensando em eternidade

em verdade e justiça e antes de tudo em eficiência do sistema de geração de riqueza

ora meu deus

sei somente que me sinto incompleto

cego

e que me conheço vagamente

5.8.07

277

o tempo passa sempre do mesmo jeito

ficamos velhos a nossa maneira

pálidos ou de boa cor

não estamos aqui para ficar

ninguém é velho para sempre

ninguém é para sempre

ponto

por que pensamos que isso deva ter algum significado

é só isso e pronto

nada nos é devido por termos concedido o privilégio de nossa presença a este planeta

ninguém nada nos deve por termos amado algumas coisas odiado outras e votado uma completa indiferença à maioria delas

deus estava em todas elas

ou em nenhuma

nem por isso pudemos olhar com igual sentimento para uma barata e para um colibri

deus estava em ambos

ou em nenhum deles

é assim que somos

haja deus ou não

um dia acaba

não sei se dói

se dá prazer

ou se nem fede nem cheira

como os pássaros fazem ninhos

como os ursos se drogam

nós fazemos conjeturas

4.8.07

276

a maldita pobreza é o mais maldito dos estigmas

falta de autonomia

dependência

coisa de condenado

por isso fé combina tanto com miséria

porque só acreditando que tudo vai realmente mudar para aceitar continuar vivendo na merda

foi para isso que vim ao mundo

para me decepcionar comigo e com deus

para descobrir que quando o fim chega

as coisas já acabaram há muito tempo

para entender que fora daqui só existe aqui

que tudo termina e que tudo nunca termina de terminar

3.8.07

275

outro dia sem palavra em que forço a barra

como sempre nadíssima a dizer

porra nenhuma mesmo

soubesse quanto melhor eu faria mandando o coração parar de bater e tudo mais no corpo se interromper

aguardando o momento oportuno

que talvez eu não saiba reconhecer

muito provável que eu não saiba

bem provável até que ele já tenha vindo

e ido

e nem notei

nem sei se devo me arrepender por realmente não saber

que merda lá sei eu da vida

meu coração bate involuntariamente

minhas atividades são todas em cumprimento de ordens alheias

talvez a única decisão minha nesta vida

talvez

seja a de aceitar esta situação e continuar vivo

cada dia apenas me aumenta a certeza do nada que sou e do quão pouco isto vai mudar

vivo esperando borrado de medo o fim terrível

simplesmente por não ver mais nada

2.8.07

274

escrevo um livro que duvido vá ser lido

eu não o leria

confissões

coisa mais babaca

confissões de famosos já são sem graça

quanto mais as de um zé mané

minha vida assemelha-se a um segredo só porque não interessa a ninguém

poderia ser trocada por bilhões de outras

talvez nem eu notasse a diferença

um dia quiçá eu olhasse para o espelho e ora meu deus veja só aquele não sou eu o que aconteceu

sei lá

e provavelmente se eu continuasse vivendo em silêncio

ninguém saberia que eu não era mais eu

todos são iguais abaixo de um certo nível de fama

morto este morto aquele vivo o outro

que diferença

contanto que continue havendo corpos para abarrotar coletivos

a riqueza continuará sendo gerada

e continuará havendo quem dela usufrua

poucos

como sempre

só tem graça ter sorte quando muitos têm azar