791

cinzas de mais uma quarta

toque de recolher dos babacas

tudo é sério no mundo

tudo estabelecido a bem da tristeza

então deixemos essas mentes vazias crerem que há alguma alegria em seus invencíveis vácuos

aí está

parece que algo se passa nessa cabeça

só se o vento

de ouvido a ouvido

só se uma

haste

fina

de ferro

quente

incandescente

de lado

a lado

na cara

se não um sorriso

ao menos dentes

em cada extremo

os beiços

esticados

quanta alegria deus meu

nada há nada haverá nada havia

sorriso

ser isto

de fato

escapa a todo

meu entendimento

790

todo dia é a mesma espera

a vida toda

sem saber o quê

nem como

esperar esperar e supor

qual o aspecto da coisa seu cheiro seu comportamento

como ela chegará

se poderá ser reconhecida

quem sabe o que já não veio

atropelou-me passou com todas as rodas por cima de mim

e eu nem vi o que houve comigo

a calma aqui é quebradiça

como um biscoito velho e seco

como a casca de um ovo de granja

tudo se desmancha em pó e se dispersa no vento

nada permanece

nesta duradoura efemeridade

o esquecimento e a lembrança

sempre duram tão pouco

mas algo foge à corrente e fica

uma suave lentidão

uma demora um pouco imperceptível

até que o tempo se esgota e olhamos o relógio e descobrimos

não vivemos

789

tão difícil aceitar de cara a secura dos acontecimentos

tudo passa

e parece que essa história de aceitação nem é muito relevante

o que vai dentro é de pouco interesse

dentro é aquele poço

de treva

de sólida negra treva

cale a boca

pronto

tudo fica bem

o mundo precisa continuar a girar

e tudo ficará bem

boca fechada

não podemos dispor do que deus nos deu

sou todo boca fechada

não gosto de respirar

e me expor

espalhar minhas entranhas por aí

quando durmo parece que deixo de ser eu

e como não sou ninguém não careço de companhia

vivo assim

não sei se vegetativo

não sei se cadavérico

não me sinto mal

não me sinto bem

não me sinto

lástima que não se durma para sempre

lástima que o bem-estar seja tão desconfortável

788

é bom ter poder

é um modo de esquecer

que nunca se tem poder absoluto

amamos sucedâneos

desde que nos dêem poder sobre o semelhante

o próprio deus que adoramos

concebemo-lo como um troço pra lá de relativo

que segundo nós está aí para colocar-nos acima de tudo que não seja ele próprio

talvez eu viva em fuga

sabe lá como vim parar aqui

tudo que me ofereçam para adiar o inadiável

aceitarei

para esse deus somos camundongos

encurralados

para esse deus

bondade e compaixão são moedas

caríssimas

ele cria a confusão

nós que saiamos dela

e vamos nos abrigar sob esses poderes menores

que tanto nos engrandecem aos olhos dos manés

787

sinto-me um trapo

menos trapo que ontem

mais que em outros dias

sinto-me comum

opaco

sem valor algum

alguém que já passou

nos corredores no trânsito na sala da casa

sou fácil de esquecer

fácil de não ser visto

como uma árvore

entre um milhão de árvores

pensando que é alguém

tudo que quero é meu sono

no fim do dia

no meio da noite

mergulhar num mundo em que esqueço desta necessidade de ser notado

às vezes acordo com a sensação de que tomei uma surra

podem ser tantas coisas

diabete fígado cansaço de esforço no dia anterior

vá saber

o que vem ao caso é que acordo me sentindo como se tivessem me surrado

quase espero encontrar negros hematomas neste corpo ao olhar-me no espelho

não passo de nada

786

como aceitamos a humilhação

dela fazemos uso até com satisfação

é por uma questão de reciprocidade

devemos deixar que nos pisem

para darmos nossa pisadinha

a vida é assim

tão bela tão perfeita tão equilibrada tão sem saída

uns se fodem outros se dão bem

isto não passa

não importa quanto se fale

tudo passa tudo vai e vem

lembrar e esquecer

e fica esta memória esta memória

isto não passa

e o mundo todo por todo tempo a lembrar-me de minha insignificância

tudo que se diga por mais diferente que seja

por mais original e divertido

terá sempre o mesmo significado

isto não passa

esta voz esta voz

este espasmo

esta memória

este amanhecer

isto não passa

as vezes inúmeras vezes

que tantas vezes

isto não passa

785

tudo aqui está fadado ao fim

tudo é peça de um espetáculo

cujas peças aos poucos

vão se trocando

sem que se note

as coisas vão deixando de ser

uma já não cabe mais na outra

todos os dias não podem acontecer ao mesmo tempo

por isso nada acontece

só vai passando o tempo

e de uma hora para outra

alguém copula

de uma hora para outra nasce mais um vivente

de uma hora para outra morremos

é como é a vida

tudo muda sem que se veja

tudo se mantém e se vai

por mais que meus olhos não creiam

por mais normal que tudo

nesta aparente placidez

abismos arrombam o mundo

sem que ninguém diga

corpos sangram

corpos crescem

784

não quero querer

não quero mais um pingo de desejo em mim

ver se me abrir um imensurável vazio

um vazio tão grande que me encha de uma infinita sensação de plenitude

morrer de tanto silêncio

a caminho da paz

é tudo que posso querer

viver calmo como os astros

como tudo que vive por viver

sem pensar em pensar

só respirar

deixar o coração bater

nada deve me despertar preocupações

nada deve me deixar abrir espaço para a dor

simplesmente estou condenado a tanto silêncio

nenhum som dentro

nenhum som fora

não tenho por que sofrer ou sentir prazer

só que sentir prazer é muito melhor

a vida se faz de gestos

783

gosto demais de viver sem problema

é fantástico não ter contrariedade alguma nesta vida

a paz

sem terríveis paisagens

tudo cai no esquecimento

já nem sei mais se sei que nada sei

também para quê

nada nesta vida me cansa

nada me atrapalha

existir é tão bom quanto inexistir

sou um poço de silêncio e paz

esta felicidade a transbordar

faz-me tão pleno

esqueci de deus

descobri a paz

tudo se encaixou

mergulhei no nada que há em mim

este oceano

tudo que há

torna-se parte inerente disto

vejo por dentro os fatos passados presentes futuros

nada nem ninguém pode me tirar isso

sou fruto e fonte da paz

tenho tudo

sou o rei do mundo

e seu melhor criado

782

minha imensa simpatia contagia todos que por mim passam as mulheres anseiam por mim de um modo que quase as leva ao descontrole o dinheiro brota do chão a meus pés e nunca me falta um tostão sequer para tudo que quero e preciso fazer eu sou foda pra caralho e em tudo que vejo há paz paz absoluta e inabalável todos me amam todos me estimam profundamente e a bondade inerente a meu ser faz-me viver atento às necessidades de todo e qualquer ser deste mundo sou um imenso sucesso profissional e amoroso caralho como eu sou foda e todos que comigo convivem tornam-se imensa e eternamente prósperos saudáveis e infinitamente felizes simplesmente por conviverem comigo meu corpo tem formas perfeitas sou musculoso e imensamente saudável e não sofro nenhum incômodo físico posso vestir um terno completo sob um sol saárico e uma umidade amazônica sem que isso cause incômodo algum e além de tudo sou um exímio redator puta merda eu sou demais

781

não preciso de esperança

tudo que desejo se cumpre

sou imune a dano de qualquer espécie

e irremediavelmente feliz

a vida tem um odor delicioso

basta um pouco de esquizofrenia para senti-lo

comunico-me com todos falo todas as línguas

nada me falta em momento algum

basta uma certa esquizofrenia

as coisas são todas certas e perfeitas

esta paz em mim é tão perfeita e infinita

que transborda e se espalha por todo lugar

sinto-me feliz

como só alguém feliz pode se sentir

e tudo em meu redor é alegria saúde prosperidade e harmonia

todos meus caminhos são calmos

tudo funciona bem

meu pai e minha mãe gozam de perfeita saúde mental e física

somos todos uns tremendos duns

780

sou bilionário elegante cheio de saúde irradio juventude as mulheres bonitas só faltam estuprar-me meu quociente de inteligência é o mais alto de todos os tempos sou o melhor em tudo que faço e todos me adoram não tenho medo algum de coisa nenhuma e sou um modelo de conduta social tenho milhões de talentos e um pau enorme que fica ereto só de sentir um cheiro de mulher sou perfeito em todos os aspectos aquilo que as mulheres sonham em ter e o que os homens sonham em ser nada me falta sou dotado de poderes extraordinários que me permitem controle completo das mentes alheias meu poder é imensurável tenho tudo que quero e só faço o que quero não existe obstáculo em minha vida ela é inteiramente sem problema todos me idolatram mesmo e me respeitam demais sou o dono do universo nele faço o que quero sem sofrer conseqüência alguma puta merda quanta besteira

779

sei que vejo em tudo

o que não tem relevo

o melhor que eu faria na vida seria esquecer de deus

exista ele ou não

seja ele bom ou mau

como irrita esta permanente obsessão

não direi aqui que vou me matar

pois não quero criar falsas esperanças

mas eu deveria

778

escrevo só para descobrir se deus existe

e caso ele exista

se ele presta

coisa de que estou cada vez mais convencido

que não

como seja

todo dia dou graças a deus por não ser deus

777

talvez eu tenha saudade de hoje

decerto

de algo que nem notei mas que me dará uma saudade tremenda

e de que só terei o cadáver que meus olhos fabricaram

algo a que amanhã atribuirei um valor desmedido

algo que nunca será o que hoje ignoro

mas algum dia

sentirei

aquela coisa

caindo fundo

como uma bolinha

não pequena demais

só o bastante

para passar

meio apertada

pela garganta

uma esfera

ligeiramente amarga

776

como qualquer dia

de quase todos os outros nada tenho a dizer

mas a folha de papel

inspiração

tudo que não tenho

como se pedaços

de algo

que um dia fui

buscassem novamente

unir-se

sem saber onde encontrar-se

uma busca

que faço por vício

a busca sem relevância

ninguém melhora nem piora

se nem todos são assim

então nem todos somos iguais

estou para morrer

é questão de milênios

aqui

sentado

conversando

com a velha

parede branca

dura ao tato

duradoura

deve estar aqui desde antes de este maldito ser nascer

tudo começa e termina lá

naquela longa extensão de branquidão

775

há surpresas que não surpreendem

novidades obsoletas

tristezas dormidas

viver

se não deu certo nos últimos quarenta e cinco anos

por que dará certo amanhã

prossigo na prática da minha especialidade

dar de cara com paredes

enxergar horizontes em muros

crer que o chão é um céu

cair pela vida afora

774

o mundo fede

mas a gente se acostuma

tanto que hoje já nem sei se isto fede mesmo ou se é minha imaginação

mas o cheiro não muda

coisa enfadonha

as terríveis novidades

os cadáveres que não morrem

de que não há como se esconder

não acaba

a coisa não acaba

rotina

abrir portas e encontrar monstros

e corpos esquartejados

e as paredes cobertas de sangue

e tripas

quero sair

773

como é bom silêncio ócio preguiça

como é bom nada fazer

como é bom não ter que lutar

não precisar de nada deste maldito mundo

não precisar de deus nem de diabo

que bom se a vida não fosse esta permanente busca de problemas

que tudo não passasse de uma brincadeira tola e de mau gosto

mas brincadeira

não tão real

sou assim

esqueço o que sou

penso que meu caminho será diferente de todos os outros

até que me vejo no fundo de todas as desgraças

772

que triste

ser arrastado

sempre com um pedaço faltando

a coisa é aqui

a salvação é um buraco

lotado de força bruta

sempre contrária

estúpida imbecil covarde

se essa força me criou

se ela criou tudo

então ela é tudo

e estou cansado de a ser

cansado desta falta de dinheiro saúde eletricidade água alegria

simplesmente quero que tudo isto acabe para todo sempre

e que deus vá catar coquinho por toda a eternidade e um pouco mais

771

vamos à rua sem olhar para os lados com os olhos só para frente esperando não ver porque o que vemos na mente e que a imperiosa voz diz que veremos fora de nós é dor castigo gemidos mas vamos à rua mortos de medo sem espaço para um fiapo de fio entre os dentes querendo viver e matar impunemente certos de haver desgraças felizes vamos buscar o sonho a saída uma última dose de tudo que se vê lá fora tem um pouco de tortura do sentir acaso e esquecimento deve ser algo assim que nos mantém aqui pois se olharmos bem olhado nossa que mundo de loucos todos soltos na rua com plena licença para não viver querendo sair não se sabe se do mundo se de dentro de si se do meio de alguma das tantas lutas que não temos idéia de por que são lutadas todo o caminho recamado dessa alegria que não é minha o mundo todo a tratar da infinita tristeza

770

eu não queria falar de idade

gostaria de ter assunto melhor

que fazer porém

sou tão insípido quanto um gaveteiro

e hoje o que me ocupa a cabeça é esta idiotice

idade

parece que os quarenta são a idade em que constatamos na carne não sermos imunes à velhice

em que descobrimos haver sofrimento sem cura

em que começamos a ficar com o saco meio cheio de deus

e de promessas

e de esperanças

e achamos que se nada aconteceu até agora é porque nada acontecerá

e mesmo que aconteça

há esta nítida sensação de que já não temos capacidade de apreciar o novo

de que nada mais poderá inebriar-nos

de que talvez ainda vivamos muito

de que talvez morramos amanhã

e ambas as hipóteses amedrontam

769

encarar o infinito angustia-me

então vejo meu tamanho

e deus a fazer piada de nossos infortúnios

deus a rolar de rir de nossos desencontros

talvez ele ria de nós para não olhar para si próprio

talvez ele seja a coisa mais pestilenta e desarmoniosa que ele poderia ver

mas nós somos diversão garantida

sem ameaça à auto-estima do criador

pouco importa que ele seja o maior sociopata de todos os tempos

ele é o onipotente

e se elegeu dono de tudo

veja só como é a vida

uma coisa sem pé nem cabeça nem braço nem bunda nem olho

um quebra-cabeça em que nenhuma peça se encaixa

estas manhãs de tédio no trânsito

dormir e acordar

768

para mim viver

creio poder dizê-lo

é uma sucessão de medos

não me lembro de um instante mínimo

em que eu não estivesse a me borrar de temores

a vida tem passado assim

não é divertida

nem sei bem se é vida

mas é a vida por que tenho passado

algo

não me alegra nem me orgulha

algo

como eu

que existe

mas que ao contrário de mim

não dorme

a qualquer hora está lá

de pé

plantado

pronto para ocupar o espaço reservado ao sentimento

é assim que sinto medo

ameaça

abandono

assim surge em qualquer vida

creio

a necessidade doentia corrosiva de ser amado

inventam-se certezas

como deus

767

devo me preparar para a morte

ela não está nada distante

só se oculta por trás de tudo

só permanece no limiar

talvez este mundo nem me faça falta quando ela vier

mas dói saber que tudo que vivo é passado

de nada vale sofrer ou lutar contra o sofrimento

beco sem saída

privada entupida

volta sem ida

morte sem vida

amargo e com raiva do mundo

maduro já podre caindo do pé

já houve quando eu cresse no fim

mas o que cada vez mais sinto é que nunca

simplesmente chegou um dia em que algo muito forte como que uma crença profunda morreu em mim

não dou mais passos em falso

mas também sei que nunca mais andarei certo

ficarei aqui

até quando

às vezes alegre

sempre triste

766

estamos aqui

os comuns

para uso geral

para o lixo para a fogueira para o trabalho pesado

somos intercambiáveis

fazemos coisas que não precisam ser bem feitas que não carecem de arte

coisas que basta se façam como seja

desde que não fiquem por fazer

o mundo não está aqui para parar diante de um lavador de carros de um balconista de um escrevente

a coisa sem sentido

a bola fedorenta

continua

gira como louca

com este monte de loucos como passageiros

e há os inocentes

aqui vivendo pelo simples prazer

aceitando as regras do jogo sem choro nem resmungo

esses então nem existem

765

tudo que há no mundo não pode ser meu

falta-me tempo

falta-me disposição

devo roer o osso

cada vez sinto mais que o dom da vida é uma penitência

não sei por quê

isto não acaba

não sei por que começou

a vida

até esqueço

o pânico da morte

devo ficar parado aqui

dias

nunca me deram uma medida

então simplesmente almejo o fim do mundo

saber que alguém

eu no caso

vai a algum lugar

dizem que esta bosta de alma é imortal

a morte é cada vez mais uma esperança

a vida e os viventes têm se mostrado cada vez mais desinteressantes

764

que xaroposa a pompa do poder

de repente

quando proferida pela boca de alguma autoridade

qualquer palavra se torna pesada arrastada indigesta

solenidade é muito mais desagradável que qualquer esgoto a céu aberto

tudo tão importante

tão digno

inconcebível num ambiente assim algo sadio

todo estado é um cadáver apodrecido

todos nos dobrando à maldita potestade

e deus e buda e maomé e toda essa encheção de saco

esses imbecis cheios de fé