31.3.08

516

a maioria de nós parece que só quer esquecer

sei lá o quê

tudo

que de repente fomos deixados aqui

sem saber por que o castigo

nada nos será dito

para ser assustadora a vida

basta vivê-la

intensamente ou não

quem faz o espetáculo não é você

no máximo um figurante

é só saber que existem vozes

coisas estranhas andando e acontecendo pelo mundo como fatos normais

o que há

nada de mais

para alguém que já esteja aqui há alguns anos

uma ligeira olhada na rua responde

lá está tudo

nós e nossas idéias

um brinquedo meio trágico

em que todos terminam mortos

nem tudo começa mas tudo termina

não sei se alguém pensou e quis isto

se esse for o caso

eu gostaria muito de não interferir em sua fantasia

mas é que sou parte dela

e tudo aqui é só dor

30.3.08

515

nada mais tolo que acreditar na liberdade

numa liberdade que começa e termina e recomeça e retermina

sei lá quantas vezes

a toda hora ganha-se e perde-se liberdade

e é difícil exercer algo livremente

ainda mais a liberdade

quando se sabe que se pode perdê-la

certas vezes por muito tempo

por tempo demais para se acreditar que até lá se viverá

mas é assim mesmo

se você não está morto só pode estar vivo

e desde que assim permaneça

você se surpreenderá com o tanto de tempo que poderá viver

de qualquer modo nem isso você é livre para determinar

sua hora de morrer

lá uma hora ela vem

pronto

e a morte

como a liberdade

para realmente ser

deve ser ininterrupta

morreu

ponto

a morte é certa

a liberdade

inimaginável

29.3.08

514

tudo que vivi em silêncio

nem sempre se cala dentro de mim

muitas vezes ouço-me falando só para dentro

sem assunto

e tenho que tolerar qualquer coisa que eu diga

tantas vezes não presto atenção nem em mim

não vejo os retalhos de discurso que me atravessam a mente

só me deixo levar pela triste convicção

por crer em milagres advindos de uma simples mudança de lado

no outro lado nada se encontra

que já não se conheça

o lado muda

não o mundo

nunca as pessoas

tudo é lugar

tudo é o mesmo

em tudo eles são iguais

as causas e os efeitos

nenhuma mudança substancial

é andar e observar as várias amostras

tanta língua tanta palavra

tanta falta de idéia

tudo é lembrança

e a sensação de que algo sempre diminui aqui dentro

28.3.08

513

a gente não sabe quando passa da metade da vida

claro que alguém com oitenta anos não vai suportar viver mais oitenta

mas nada nos avisa do momento em que isso acontece

agora sei que até meus vinte e um anos eu ainda não chegara à metade de minha existência aqui no velho vale de lágrimas

depois é tudo mistério

é certo porém que cada dia torna mais provável a passagem desse ponto

afinal de contas viver o dobro é viver outro tanto de tempo igual ao que já vivemos

também vá saber qual a importância desse conhecimento

como se só quem tivesse vivido menos da metade de sua vida pudesse estar realmente vivo

o tempo de permanência não serve para medir a vivência

na verdade só quero ficar longe da morte

o mais possível

em tempo

em distância

em pensamento

27.3.08

512

como é bom nada absolutamente nada sentir

por tudo

a vida passar e ser como nada a acontecer

estar no mundo e ser como as pedras e os muros

sem proximidade que me deixe enredado com a vida

a tal ponto que quando penso que tudo acabou na verdade tudo nem terminou de começar

quero ser um zero

e não ter que viver fingindo ser um

26.3.08

511

já falei quanto quero um dia me ver diante de nada

diante de compromisso nenhum

de necessidade alguma

nem mesmo de respirar

simplesmente ser uma máquina de modelos e suposições

que nem quando morre nem quando vive provoca lágrimas

algo que nem sei se se pode dizer que existe

mas que é concebível

pensável

e absurdo

tal qual a vida

25.3.08

510

deus inventou o compromisso só para que descobríssemos a raiva

não me pergunte qual a utilidade disso

de verdade

não tenho a mais mínima idéia

o que pode haver de bom em sabermos que temos um lado nebuloso

esta história de existir cada vez me convence menos

esta busca por sobrevivência

esta tentativa de dar base filosófica a impulsos fisiológicos

o homem não suporta o que vê

e por isso passa a pensar no que não vê

naquilo que não se vê pode-se ver o que se quiser

não que assim as coisas se transformem

só se cria em nós a ilusão

e o homem

por uma simples ilusão

é capaz de infinitas barbaridades

24.3.08

509

antes de tudo deve haver um clima

digamos assim uma atmosfera

nada acontece sem a adequada ambientação

o adequado tempo o adequado momento

o dia precisa ter uma determinada cara

para então as coisas acontecerem

há dias em que se vêem muitos animais na pista

em que no trabalho surge sempre um mesmo obstáculo no mesmo tipo de situação

impressionante como sempre desaguamos nas mesmas águas

todo dia

esta teima em permanecer vivo

já é sabido como começa e como termina

levantar aqui e cair lá

dor de cabeça

esta vida que tanto se quer

até quando sem compromissos

até quando tudo que nela se vê é tranqüilo

a vida ainda pode deixar-nos loucos

se é que o mero fato de viver já não é efeito

de algum tipo de loucura

23.3.08

508

sinto-me em suspenso

numa casa sem janela

enquanto o tempo

não devo me perder em explicações

todas inúteis

muita coisa depende de muito pouco para ser

e quanto isso pode custar a acontecer

esquecida e ignorada fica a coisa mínima que faltava

eu estava vendo o tempo passar e ele passou

o dia passava e eu servia de calçamento para sua passagem

eu era um pedaço de coisa a escorrer pela parede da casa

nunca me ocorreu fazer algum movimento

era só esta rotina

por mim poderia ser para sempre assim

a vida

22.3.08

507

às vezes a casa treme

vá alguém saber

motivos há

maus e bons

casas não devem ruir sem mais

quanto não demora para que elas se ergam

há tanta espécie de desamparo e abandono

como é fácil superá-los quando não são conosco

então não há obstáculo

aquela sensação de que o mundo acabava

talvez fosse eu morrendo

esta maldita mania de brincar de esperar e acabar esperando de verdade

21.3.08

506

sair da cama sem acordar

trazendo na face aquele silêncio eloqüente

de quem não sabe por que veio ao mundo

mas sabe que o mundo não foi feito para isto

não importa quanto se silencie a respeito

é fato

estou milhares de quilômetros distante de toda desgraça

mas é uma condição tão instável

qualquer nada pode mudar tudo

20.3.08

505

não sei o que há

o mundo de repente vira do avesso

parece não ser preciso muito porquê

simplesmente veio e aconteceu

e só agora notei

agora ou nunca

tanto faz

já o conhecimento de nada vale

somente dado histórico

caso eu queira sentar e admirar o passado

19.3.08

504

se as coisas não fossem meramente as coisas

se nelas houvesse mais que elas

bem como as situações

não fossem elas apenas o que são

mas é isto

meu mundo

um tanto plano

um tanto igual do começo ao fim

aquela coisa

que às vezes nem sei se estou sentindo

apenas presumo

por ainda ser capaz de fazer movimentos

continuar vivo

dentro daquele contínuo

todo similar a tudo

como uma folha boiando na água

enquanto houver folha e água tudo permanecerá assim

silêncio

virtual imobilidade

o que não é nada mau

desde que não se seja condenado a isso

18.3.08

503

e eu nesta sonhação besta

tudo brota do nada a todo instante

parece que o mundo existe para ocultar a si mesmo

fazendo-se de complicado

e dispendem-se horas falando disso

17.3.08

502

pode-se esperar durante milênios para se viver por fração de fração de segundo num mundo perfeito

enquanto se espera vive-se

mesmo que não se queira

até hoje não sei o que fazer para me poupar desta monótona alternância entre eu e eu mesmo

talvez minha vida possa se tornar um pouco mais interessante

mas duvido

às vezes parece que a vida faz meus ossos pulsarem

noutras duvido até que meu coração bata

e dentro de mim estas imagens

nunca perfeitamente claras

16.3.08

501

não sei se tenho jeito para viver completando dias em atraso indefinidamente

correr atrás do calendário

o que deveria ser tão fácil com tanta facilidade tornou-se tão difícil

sei que em minha vida já houve momentos em que me senti

absolutamente

livre de qualquer compromisso

mentira

bendita mentira

pois tenho certeza de que viver

seria muito melhor

sem a descomunal quantidade de medos temores e preocupações e receios

tudo parece cobrar-me permanente atividade

não tenho a menor idéia do porquê

deixo-me aqui

sem entender

na verdade bastante atordoado

como quem escapa ileso de um acidente letal

algo meio que renascido

algo meio que morto inúmeras vezes

15.3.08

500

neste silêncio pequeno

de um cômodo fechado

no escuro

aos sussurros

confesso

não sei quem sou

nem quantos

isto devia ser mais simples

as línguas deviam ter menos vocabulário

os faladores deviam falar menos

ou talvez devêssemos ouvi-los

se é que sabemos ouvir

tenho tantas provas de que eu não sou eu

não sei como não levanto suspeitas

tanto melhor

se bem que ser ignorado

mesmo quando em meu benefício

é desagradável

eis o mal

esta busca de reconhecimento

apesar de todas as vantagens do anonimato

não importa

a fama é um deleite todo particular

de repente seu talento se torna sua marca oficial

e você que nem sabia ter talento

como seja

desde que dê dinheiro

14.3.08

499

é bom

simplesmente isto aqui

os sons vindos de fora de modo algum causam incômodo

são os bichos do terreiro a recolher-se para a noite

conforme a noite

e tudo cai de volta no silêncio

tudo que não seja eu

por dentro

engraçado como o possível tantas vezes nos ofende

na verdade tudo que sei é que não sou capaz de abandonar este estado de perplexidade

e escrevo a muito custo

queria apenas poder viver dormindo

em silêncio e em calma

num mundo só meu

13.3.08

498

a vida não é complicada

só arriscada

não sei nem se arriscada

na verdade não há risco

mas certeza

viver é uma coisa assim

esperar o dia

apenas esperar o dia que ele chega

a vida

sob muitos aspectos

é um tremendo moinho de dissabores

12.3.08

497

quantos mais destes dias haverá

meu trem aqui cuidando de mim

a bicharada em paz por aí

quantas vezes mais

antes que o mundo comece a rodopiar de novo

antes que a náusea novamente

e eu não saiba mais ver

vivo sob a regência de uma catástrofe iminente

viver deve sempre ser assustador

a vida não pode ser calma e plana

pouco se me dá que me chamem de piegas

mas me sinto muito cansado

não de sofrer

mas de viver com medo de sofrer

presumo que ainda me restem uns anos

talvez eu presuma demais

mas hoje acho que

se temos de viver

devemos viver para o que é terno e suave

acho que nada há no mundo

mais piegas

e mais verdadeiro

e mais difícil

11.3.08

496

como tudo pode se tornar corriqueiro e banal

a começar pela vida

que salvo engano já teve algum dia um sabor excepcional

como se eu tivesse data certa de encontro com a paz absoluta

e tudo parecia ter sentimento ter reflexo dentro de mim

não sei quando começou a nuvem escura

mas ela veio

e parece cada vez mais dona de tudo

dias mesmo há em que não queria viver

em que tudo se torna denso em demasia

quisera dizer que algo maldito se me apossou para assim me eximir

mas não em tudo sempre fui eu mesmo

pensando na morte

pensando nas maneiras por que se pode morrer

nada houve que roubasse meu lugar em mim

tudo fui eu

sem medir conseqüências

sem saber dizer não

10.3.08

495

pai sempre deve estar lá

mesmo não sendo um superpai

ele deveria sempre estar lá

porém via de regra os pais morrem primeiro

o mundo não está aí para fazer sentido

as coisas não são postas no mundo para ter bom sabor

elas estão por aí

prove-as por sua conta e risco

dizem que vim ao mundo porque quis

e que dele só devo ir quando outros queiram

complicado entender a vida

ou impossível

coisas nos são dadas para nos serem tiradas

muito provável que tudo não passe desta memória indelével

coisas que vimos

coisas que virão

tudo já é passado futuro e presente

difícil de entender quando se é parte da cena

difícil deixar de ser quando dizem impossível deixar de ser

mas eis a realidade

sendo jogada para o alto todo dias

e voltando a ser da maneira como volte a cair no chão

vivos ou mortos

9.3.08

494

estendo a dor e quase não sobra espaço em mim

a paz

por mais que eu a estique

não basta para cobrir-me uma mão

queria tanto aprender a desligar tudo

e simplesmente sair daqui

sem dor sem transes chocantes

como se isto fosse uma mera cabine telefônica

que eu usasse quando bem entendesse

não este fardo tão cheio de conseqüências

este peso

estar vivo é viver preso

8.3.08

493

de vez em quando alguma coisa muda

não sei o quê

vez por outra há um ligeiro pânico

nada que chegue a assustar

ninguém entende como possa ser

nem eu

só sei que é

nem sei muito bem onde é o que percebo

vezes há em que parece fora

vezes em que ainda mais fora

mesmo quando encosto a cena no olho

ela me parece distante

mesmo quando estou nela

encontro-me a milhares de quilômetros daqui

e para dizer a verdade um tanto de saco cheio disto

louco para virar uma subpartícula subatômica

se a absoluta inexistência for mesmo de todo impossível

se este for mesmo um mundo de utopias do possível

um mundo só de possibilidades

não sei por que quis viver aqui

ou por que ainda

7.3.08

492

ninguém sabe qual a maneira correta

mas todos sabem repudiar o erro quando lhes é apontado

na verdade ninguém sabe muito bem o que é erro

mas o mundo talvez deixe de ser mundo sem certo e errado

então temos que decidir o que fica sendo o quê

daí vai que às vezes uma voz vem dos meios de comunicação

trazer-nos mais uma valiosa noção de errado ou de certo

até que um dia por um efeito do tipo massa crítica

algo se desencadeia

começo a dar sinais de possuir uma consciência crítica

ou seja eu já teria domínio suficiente do jargão para emitir opiniões que serão perfeitas reproduções do que pensariam meus superiores

então sim estarei pronto para ensinar

quando já não houver mais nada de mim em mim

quando os argumentos do mundo tiverem me vencido

e eu estiver convicto de nada ser e de que isso é felicidade

6.3.08

491

hoje é dia de nada

que eu saiba

é só mais um dia de ficar assim

meio que esquecendo das coisas ao olhá-las longamente

um dia que nem vai cansar nem vai matar

embora tudo possa acontecer

acho que só eu estou nublado hoje

parece que há uma placa em algum lugar dizendo tudo está normal hoje nada vai acontecer

fico pensando sobre o que será nada

vejo que não tenho conhecimento para entender a placa

mas gosto do que ela diz

a partir disso crio projeções de futuro que me agradam

nada acontecendo

nada acontecendo dá-me a idéia de que nada de

excepcional

aconteceria

só haveria aqueles fatos de sempre no mundo

aquele algo de rotina que nem é de todo mau

ver pássaros todo dia

pássaros soltos

e ouvi-los

a rotina da natureza sempre é bonita

5.3.08

490

pudesse a vida ser só isto

fumar bagulho e coçar o saco

não sei por que pedir mais

só coisa boa

imaginemos um mundo ideal

sexo comida ócio clima perfeito ambiente também

não sei se seria necessário ficar doidão para viver num lugar assim

um lugar para simplesmente ser

seja isso o que for

se é que simplesmente não somos em cada momento

pois de que outra forma seríamos

senão sendo

o homem nega até sua condição elementar de ser vivo quando nega sua condição de ser

e é nesses pequenos gestos que ele revela sua vocação para a imbecilidade