28.2.09

850

não sei quanto uma vida pode valer
na determinação desse valor deve haver vários fatores
tais como se a vida é própria ou alheia amada ou odiada rica ou pobre
trata-se de comércio
tudo tem expressão econômica
vivemos a estimar valores
sempre somos instados a escolhas
devemos fazer a mais vantajosa
cansei disso
não tenho fibra
para viver nesta história de jogar fora umas coisas e guardar outras
é a regra do jogo
e não sou o dono da bola
não me cabe dar ordens
não sei quando vou parar de falar disso
novidade nenhuma
é a vida
ou o que me dizem sê-la
esta coisa que costuma começar nas entranhas de uma mulher e terminar nas entranhas dos vermes
a vida
e suas oportunidades
nascer morrer
quem sabe o que mais

27.2.09

849

acho que o sonho de minha vida seria que eu fosse capaz de inspirar medo e tesão
muito medo e muito tesão
deixar de arder no frio
realizar a fantasia do novo milênio
a tal atitude
troço mais besta
essa história de ser rebelde conformado
ser malvado e amado
roubar para pagar os impostos em dia
ser uma coisa fingindo outra num mundo que é uma coisa fingindo outra
por trás de tanto respeito e reverência
o que há é afronta e desprezo
por trás do vocabulário rebuscado do pudor dos gestos e das vestes solenes
tremenda duma putaria
devo estar maluco
só pode
mas a normalidade talvez me fizesse ainda mais louco
creio

26.2.09

848

ainda bem que no fim ficam minhas incertezas
e minha obesidade
presumo
por si só o fato de fazer o bem aos outros
não me dá prazer nenhum
ainda bem
presumo
que no fim restem minhas incertezas
e esta vasta barriga
e este bem calçado pneu
o resto é volátil volúvel e incerto
quando não totalmente sem sabor
como quase tudo
quanto mais permanente e inalterável
mais insosso
basta tomar deus como exemplo
em compensação o prazer
como some fácil
como surge difícil
se desejamos muito uma coisa
ela não nos acontece
se não a desejamos
ela acontece
brincadeira mais idiota
a melhor parte de viver deve ser morrer

25.2.09

847

é tão frágil o papel
daqui a trinta anos estará bem amarelo e quebradiço
daqui a cem anos então
o tempo é voraz
quem cuidará do que é meu
quem cumprirá minha vontade
creio que todos um dia nos defrontamos com o grande moedor de carne
depois de tanto e tão pouco
deixar rastos de mim
que o primeiro vento apagará

24.2.09

846

viver sem quereres
fazer por fazer
saber não pensar
estar sem se fazer presente
talvez tudo isso faça parte da arte de ser feliz
da arte de saber viver sem sofrer
ter um lugarzinho de silêncio e de senso
onde nem deus nem diabo nem vidas passadas futuras presentes
saltar deste bonde fora dos trilhos
cheio de loucos lutando pelo comando
e lá no canto
sentado
encolhido
o condutor em pânico

23.2.09

845

sentei à margem do corredor
encostei na parede
não faço idéia de onde estou
mas não tenho mais dúvida de que isto é um labirinto
sei lá se proposital
sei lá se fui responsável
só sei que estou sentado à margem de um dos milhares de corredores
milhares milhões sei lá
para mim são infinitos
retos ou tortos
não consigo sair daqui
talvez até por medo
esta doença degeneradora
que nos faz suplicar por destinos
pensar em futuros
e nada sermos
se eu pudesse limpar um pouquinho minha mente
se nela eu pudesse reservar um cantinho para nada
onde nada
nem eu

22.2.09

844

o divertido joguinho continua
o céu ou o abismo
importante é competir
uns poucos fodem muitíssimos
interessantíssimo
pra lá de instrutivo
venha participar
venha não pertencer a si
ser bem alheio
pouco se dá
gostar ou não gostar
aceitar ou não
é de nenhum relevo
as máquinas são simples
no que respeita a mente e coração
elas não os têm
seus atos não se sujeitam a razões ou emoções próprias
simplesmente ocorrem
não há importância no íntimo
mas no valor do animal como força de trabalho
instrumento apto à geração de riqueza
não é questão de amar
não é questão de querer

21.2.09

843

prédios muitos prédios
altos cheios de andares
cheios de gente
brotando à margem das vias feitas de cimento asfalto postes de um monte de coisas em que piso que toco e cujos nomes não sei
tanta gente
isto tem um certo ar de pesadelo
mas dizem ser bom
é o medo decerto
o medo de ser
que não nos livra de ser
só nos faz ser medrosos
achamos isso aceitável
afinal viver é tão importante
importante a ponto de valer as mais abjetas humilhações
as mais torpes violências
viver vale muito
eis uma convicção
cega
é verdade
mas firme

20.2.09

842

que fácil esquecer e lembrar
difícil é escolher quando
é não deixar lembranças soltas
como se minha mente fosse área franca
por onde as coisas passam sem compromisso
não passo de um lugar
um lugar sem importância nem beleza
sempre lá
de que nunca se ouve
um lugar que sofre a ação do tempo
e eventualmente se restaura
para mais um tanto
a passagem das coisas
a vida
viver é ser esta rua esta praça este logradouro
por onde felicidades e tristezas
coisas roubadas dadas perdidas vendidas tomadas ganhas
este peso
eventualmente leve
eventualidades

19.2.09

841

será que antes de morrer terei alguma vida
será que experimentarei algo que me mude este sentimento
que me dê satisfação
que me leve a dizer sem sombra de dúvida alguma
que pela primeira vez em toda a minha vida me leve a dizer algo sem nenhuma sombra de dúvida passada presente ou futura
absolutamente nenhuma
será que algum dia experimentarei uma satisfação tal que me leve a dizer
certo como nunca
que a vida valeu a pena
que parto sem ressentimento
e que levo uma saudade que me faz feliz

18.2.09

840

essa idéia idiota de igualdade
só mesmo na cabeça de um ser humano
tudo é feito de diferenças
diferenças que até aceitamos bem
desde que não impliquem desvantagem nossa
quando a coisa é em nosso desfavor
surge a conversa da igualdade
ó senhor por que me fizeste diferente do meu irmão bilionário
o mundo não é assim
e nada nem ninguém o fará ser
a vida é um amontoado de fatos
um caminho solitário
que só aquele determinado vivente pode percorrer
uns vivem com prazer
outros entretanto
ou se aceita
ou não se vive
esqueça a tal da igualdade
igual é defunto
tudo frio e encaixotado

17.2.09

839

não sei como me sinto sabendo que não há vez para mim
não sou o único
nem faço parte da minoria
talvez todos mais ou menos se sintam assim
bem provável
mas parte inerente deste sentimento é crer que somos únicos e últimos
que nunca nada nem ninguém
não é assim
diz-me a razão
a verdade mais pungente dentro de mim é uma mentira
quantos desgraçados não há além de mim
mais e menos

não disponho de um desgraçômetro
então fica difícil determinar o tamanho dos infortúnios
mas sei
mesmo que não muito bem sei distinguir uma desgraça de uma graça
o que me põe a pensar
sobre o que de tão bom
nesta tal de vida

16.2.09

838

não sei nem quero saber que diferença entre fuga e superação
a velha história de olhar de frente para os problemas a fim de alcançar sucesso
sucesso para mim é uma casinha no mato cheia de conforto em que eu possa viver o resto da vida sem precisar trabalhar e sem depender de ninguém para o sustento meu e dos meus
sucesso é conquistar um modo de vida que não me obrigue a um constante contato íntimo com as engrenagens da nauseante sociedade humana
mas aqui estou
talvez até sendo útil
grande bosta
não vivo para dar
só para receber
muito
deve ser por isso que estou morto
que aqui poucos querem dar
e dos que querem dar
poucos têm o quê
na verdade o mundo não é nem para metade dos que nele estão
isto aqui é um saco de gatos

15.2.09

837

não sei pra que juntar todo esse conhecimento
tanto por tão pouco
há muitos mais modos muito mais fáceis e agradáveis de enlouquecer
caminhos melhores e mais baratos
mas parece que tudo sempre deve ir pelo mais doloroso e complexo
o árduo que não compensa
a forma de menos viver vivendo
dizem haver sabedoria nisso
sabedoria e sábios
eu devia morrer e deixar o mundo para os sábios
a meu ver seria bem mais simples nascer e morrer tão-só
ou nem nascer
e não saber o que é amar e odiar prazer e doer ter e não ter ganhar e perder
minha impressão
é de que ser nada
é muito mais que ser tudo isto

14.2.09

836

uma música de culpa
como aquele tema ondulante tocado à exaustão em farrapo humano
excelente comédia diga-se de passagem
personagem principal impagável
uma longa propaganda contra o alcoolismo creio
tudo por intermédio do etilista padrão
o sonho de qualquer igreja
aquilo que todos serão se beberem
talvez até com direito a um pouco de música de culpa
como aquela do filme
que às vezes lembra a música dos velhos filmes de ficção científica
daqueles de mundo cheio de ameaças
tudo a ver com música de culpa
homens querendo ser deuses
como se algo nos fosse devido ou a alguém devêssemos por estarmos aqui
mais uma vez repito
mais uma
deus é um saco

13.2.09

835

todo dia falando
todo dia ignorância e inépcia esbofeteiam-nos a cara
e falamos falamos falamos
nada temos que mova o universo para nosso ponto de vista
apesar de havermos criado deus
insistimos entretanto
afinal coisas acontecem
e quando muitas coisas acontecem
coincidências sempre há
e então pronto
deus
lá está deus
adeus medo
adeus insegurança
pode-se até desfilar a porra da ignorância com orgulho
se deus é por nós
blá blá blá
todos querem saber
com ser uma besta
num mundo cheio de mal
imune a tudo
e cheia de poder sobre todos

12.2.09

834

sinto-me sem fim nem começo nem meio
algo como náusea
pensar que se flutua
e descobrir-se pendurado numa corda
e descobrir que a corda não se prende a nada num extremo
e a seu pescoço no outro
e que há dias você não respira
e olhar para suas mãos e vê-las roxas fundamente marcadas
com marcas de corda
e então juntar uma coisa e outra
e ver que brincamos de estranhos com nós mesmos
até que a brincadeira ficou pesada
e assumiu uma feição séria
e lá dentro criou-se uma disputa ferrenha
e passamos
eu e eu
a me disputar fazendo uso dos recursos que tivéssemos à mão
e então um de nós
não sei se eu ou eu
lançou mão da forca

11.2.09

833

sou tão aquém dos enigmas da vida
que a vida perde todo interesse
torna-se uma enfadonha seqüência de dias intermináveis
nos quais não há tempo para nada
e nada há
por que tanto lutar
só por medo do desconhecido
o conhecido
mesmo que só infortúnios
ao menos é uma desgraça velha
já aninhada na alma
que já aprendi a ignorar

10.2.09

832

sei lá como me sinto
mas sempre
não sei se obrigação ou vício
é
ponto
como deve ser bom saber não sentir
parar
deixar o peso nalgum canto
não mais arrastá-lo qual tesouro inestimável
o problema é que o peso sou eu
não sei se vou continuar existindo caso o inferno acabe
se a desgraça toda sou eu
se a desgraça toda é a vida
fudeu
não há o que fazer
é quando a perplexidade
e tudo que me ocorre então
é que devo
é imperativo absolutamente necessário
que eu entre em pânico
só assim me sinto em paz
só sob tormento
a hora em que a vida acaba nem sempre é o fim
muitas vezes ele veio antes

9.2.09

831

nada para sempre
por mais que não há como
tudo questão de gosto ou de opinião
prevalece quem tem maior poder destrutivo
talvez até para sempre
quem disse que tudo existe a termo
talvez não
talvez eternamente
talvez para todo sempre
existir seja submissão a velhas brutalidades

8.2.09

830

saber o que fazer
parece que aí está o segredo
tudo que faço faço sem saber
muitas vezes nem sei que faço o que faço
quantas vezes não olho depois e penso devo ter feito isso
a coisa tem uma marca
a marca de minha ignorância
minha marca
vejo-me naquilo
como viver
senão assim
sem saber
se a vida é abismo
se viver é queda
ou se a vida é emparedamento
viver é asfixia condenação eterna pena
por nada
sofrer sem porquê
só porque viver é bom
tão bom que até quando tudo é sofrimento
que bosta
sou minha única oportunidade
já vivi mais da metade da minha vida
e nada encontrei que me levasse para fora de mim
só este abismo
que creio ser eu

7.2.09

829

coloque juntos num mesmo recinto um imbecil e um aparelho de som
se música de axé ou pagodão ou música de matar porco ou roquinho meia-bomba começarem a soar a toda altura
não tenha dúvida
você está diante de um brasileiro
um sujeito que vive certo de ser o único no universo
pronto para lamber o saco de qualquer estrangeiro
criatura deprimente
sem amor próprio nenhum
que se considera o bocó mais alegrão do pedaço
cu de destino
não bastava eu ser gordo indisposto opaco pobre e um monte de outras merdas
não bastava não
além de tudo eu tinha de ser brasileiro

6.2.09

828

esta coisa é como um fio
que um dia esteve estendido
todo sem embaraço
fio que um dia
sei lá por quê
resolvi enrolar
talvez sob pretexto de ganhar espaço
agora tenho esta gigantesca bola
composta de infinitos nós
que não tenho idéia de onde colocar
que não sei como destruir
aqui na escuridão perante a parede nua
compartilhando espaço com o estupendo novelo de minha vida
não me lembro de onde peguei tanto fio
dizem que vivi tudo isso
ou que tergiversei
vivo
viverei
e o esquecimento nunca será bastante
parece que infinitamente
sempre
mais um dia
nesta maldita
mais um medo
mais um

5.2.09

827

que modo estranho de viver é a vida
viver como todos
assim
na base do não sei
vai se caindo
degrau a degrau
vida
como todas
nem mais um menos
farsa miserável
glórias imbecis
não se constrói nada
apenas tenta-se cair o mais devagar possível
cansaço
tédio
insignificância
nunca se será ninguém
e há tantos que se presumem
em seus peitos não há coração
em suas barrigas não há um pingo de merda
vir ao mundo para isto
viver por tantas vezes é esmagador
esquecer é uma benesse
deus me deu esta memória
sei lá quem é deus
só sei que não gosto dele
melhor esquecê-lo
deus não me deixa
sua força é muito grande
sua covardia maior ainda

4.2.09

826

se amanhã houver um dia
como um passo vem depois do outro
será mais um dia
como o passo seguinte
ou o tropeço
coisa sem serventia
da qual pessoas que se dizem sábias
tiram sábias conclusões
ainda que não haja entendedor apto
ainda que não haja entendimento possível
o cadáver continua em uso
ninguém sabe a que espécie ele pertence
nem se um dia já esteve vivo
a única certeza é que agora não passa de um morto
que todos sacodem
em defesa de suas idéias

3.2.09

825

às vezes penso no futuro como um passado do avesso
uma coisa que nunca me deixa
e que me faz sem surpresas
olhar o que vem
sabendo que nada haverá de diferente
salvo o mínimo necessário para que se diga que o tempo tem passado

2.2.09

824

houve hoje certa dissociação entre mim e o dia
novidade
fazia sol sobre meu cinza
como se uma chuva
não chovia
mas como um fio de água a pingos acumulada nalgum absconso
esta infiltração
fez o mundo úmido
gélido

1.2.09

823

sei que nada vou fazer que me tire do fundo do abismo
de que vale saber que não estou só
sei que nada vai me suceder
viverei eternamente aqui
estéril como todo eterno
como tudo que permanece parado feito estátua no universo
tudo que só existe para esmagar
tudo que torna a vida vida
em cada minúsculo pedacinho de instante
perco eternidade
tudo me foge por entre os dedos
tudo que toco fica como eu
não quero ser feliz
não pedi tanto
talvez me baste não ser