30.4.07

180

viver na expectativa de que um dia as expectativas acabarão

converter-se na própria espera de que viver esperando não seja o fim de tudo

o tempo gasto esperando e seu sabor vão

tudo sangrando sem parar

incêndios catástrofes

e deus mandando louvá-lo e adorá-lo ainda que soterrados

ainda que cheios de dor ou de pavor da dor

é que deus nos ama incondicionalmente

tão incondicionalmente que ele decretou não precisar demonstrar-nos seu amor

na verdade falo do que não faço a menor idéia senão por aquilo que os outros

que vez por outra conseguem ser mais idiotas do que eu

me disseram que lhes foi dito por outros que de outros ouviram o que outros lhes disseram

essa conversa já dura milênios

e já inventaram deuses para todos os gostos

deus tarado deus bonzinho deus guerreiro deus vingativo deus babaca deus da paz e o cacete

mas quando se olha por trás de tudo isso

o que se encontra é o ser humano

no apogeu de sua parvoíce

fazendo o que melhor faz

29.4.07

179

não sou nenhum fenômeno

nada em minha vida é notável

tudo que em mim soa extraordinário soa-o só a mim

não sou especialmente nada

nem chego perto

embora meu corpo seja grande

muitos há maiores do que eu

embora eu seja um fracassado

quantos fracassos muito mais retumbantes não vejo todos dias

não sou o que faz mais nem menos pontos na loteria

estou entre

como quase todos

evitando como posso um extremo e desejando com ardor esquizofrênico o outro

e vendo-me cada dia mais velho cada dia mais louco cada dia mais dentro de algo que nunca quis

como tantos

deixando-me envolver

aceitando desafios que em nada me interessam senão pela paga

a qual nunca será bastante pois não há o que me devolva o que nunca tive

nunca fui e nunca serei especialmente grande nem especialmente pequeno

só faço número

como tantos

28.4.07

178

eles querem medir meus conhecimentos

conhecimentos que brotam do nada

dor apócrifa

uma coisa que vem e vai e se explica apenas dentro de limites tão estreitos

todos caminhos que levam ao fim mesmo

esta identidade de causa que comunica tudo

não comigo

deixando-nos todos com a mesma cara

força que diminui toda força

trabalho sem fim

devotado a um obscuro ideal benfazejo

que alicia mediante coação

prometendo desgraças infinitas

eu gostaria de saber por que tudo se move

por que não têm freio esta locomotiva e seus infindáveis vagões

não quero estar aqui quando os trilhos acabarem

27.4.07

177

estou cansado de detestar sempre as mesmas coisas

e no entanto elas permanecem detestáveis

e ao alcance de minha vista

ou de minha lembrança

não deixo de vê-las

meu cotidiano parece que se converteu em contorná-las

sem nunca esquecê-las

um comportamento recorrente que torna tudo igualmente insípido

começando pela necessidade de escolher a cada instante

entre o abismo e o paredão

chamam isso de livre arbítrio

esta brincadeira pesada

que um dia machuca

e mesmo que depois venha uma alma boa socorrê-lo não há curativo que feche a ferida

não há ferimento visível

você está perfeito

pronto para o amor

e no entanto

lá por dentro é só um monte de escombros

e o vício da solidão

e o olhar obsessivo

que sabe muito bem que nada vai ver

mas que ainda assim olha

fixo duro estático

para a infinita parede branca

26.4.07

176

eu só quero um culpado

já sei que não há saída

já sei que tudo termina em desgraça

e que tudo que posso fazer é sentar e assistir ao meu naufrágio

então tudo que peço é um culpado

alguém em quem eu possa bater

a quem eu possa xingar

de quem eu possa sentir toda a raiva que sinto agora cegamente

por causa de tudo que vou perder

de tudo que ficará para trás

de toda a eternidade que não me foi dada

não me diga simplesmente que tudo isto é natural

que faz parte

que a morte e que isto e aquilo

não há razão nessa hora

é simplesmente a velocidade dos fatos

sair desta vida lenta e arrastada

numa fração de segundo ser arremessado para longe de tudo que nunca foi seu

mas que você amou e odiou e rejeitou e ansiou como se em tudo aquilo estivesse o eterno

como se algo existisse porque você existia

como se você tivesse uma vontade

arranjem-me um culpado

25.4.07

175

não creio que haja saída

muito menos que se deva procurar o caminho

se a vida é feita de suposições

vou supor que suposições de nada valem

que a fé

essa suposição que serve de base a todas as outras

que a fé não passa de um vício

que nos torna dependentes desta droga de vida crendo em outra droga de vida

nada que de bom encontrei no mundo estava em mim

riqueza material grandeza de alma firmeza de caráter

para que começar agora com essa história de fé

de supor do fundo da alma que algo ou alguém possa me salvar deste inferno chamado eu

eu sou o fardo que devo carregar pela vida

ponto final

goste ou não

como posso ter fé se a fonte do meu mal é tão interna

como vou me livrar de mim se não tenho um pingo de preocupação com o bem-estar alheio

se tudo que concebi sobre a vida não passa de suposições

se vivo sem saber o que é uma certeza

apenas suponho o que seja

24.4.07

174

o tempo passa parado

ontem tive a idéia de algo para escrever aqui

esqueci

hoje vai ser mais um dia depois de mais um dia antes de mais um dia

na vida de mais um

e deus lá

pendurado no meio da minha consciência

num canto qualquer dele a inscrição

lembrança do papai e da mamãe

ame-o ou morra

a morte vem de uma vez

embora a gente se mate aos poucos

estamos vivos

estamos morrendo

na expectativa ansiosa do dia em que a hipertensão finalmente extravase

pedindo clemência a deus ao diabo ao governo e a quem mais apareça de arma na mão cheio de dor para dar

exigindo minha carteira e meu silêncio

pronto para esquecer meus pecados e adiar a pena

o inferno tem fronteiras controladas e animais marcados

não sei se em algum lugar foi escrito mas deviam pôr bem legível o seguinte aviso

esta porra é eterna

esqueça qualquer outra promessa

a verdade e o caminho já estão sobre sua cabeça

prontos para pisar

23.4.07

173

deus nos jogou no mundo e disse

agora se virem

e só foi acrescentando dificuldades conforme superávamos as existentes

de modo que ao que se saiba nunca ninguém terminou a brincadeira de modo outro que não voltando ao pó de pés juntos

e deus lá se borrando de rir

pensando consigo mesmo

sacaneei legal

e nós aqui

acreditando numa saída

lambendo o saco do sujeito para ver se ele pára com a matança

pois deus

se é que deus caga

se é que deus anda

deus está cagando e andando ou coisa que o valha para nossas súplicas

não adianta puxar o saco do velho

o que não lhe falta é bajulação

e ele não está nem aí para nada disto

vejam só o tal do jesus

que até parecia ser gente boa

e entretanto terminou como terminou

e aí os bajuladores vêm com a conversa de que ele morreu para pagar umas broncas dos homens

de que tudo aconteceu por causa do ser humano

e o tal do deus lá

mexendo os pauzinhos e se indagando

será que sou capaz de criar algo ainda mais idiota

22.4.07

172

esta liberdade tem algo de contrafação

cada gesto aprisiona

ninguém vai matá-lo por aquilo que você faz ou sustenta

mas também ninguém tem a obrigação de amá-lo ou de garantir-lhe a vida por causa disso

pode-se obrigar alguém a fazer

não a sentir

não queremos simplesmente liberdade

mas a completa inexistência de limite

a faculdade de ser ao mesmo tempo tudo

inclusive nada

e que nada nos elimine

nada nos prenda nem nos obrigue

e que tudo que nos caia aos olhos se experimente

sem esta brincadeira louca da passagem do tempo que conduz à morte

da morte vindo sem aviso e sem escolha

sem esta condição de mero personagem da fantasia alheia

fantasia de um deus que nos leva de um lado para outro segundo os caprichos de sua imaginação nem sempre muito interessante

não quero mais ser brinquedo de outro

nunca quis servir à satisfação desse deus que de mim se apropriou

e que me obriga a venerá-lo

21.4.07

171

como falamos

falamos do que vemos e do que não vemos

falamos indefinidamente

nunca chegamos a nada definitivo

mas falamos

com desespero

com gestos

fazemos toda espécie de sinal em busca de comunhão

desejamo-nos inteiros sobre a mesa

e aguardamos ansiosos que nos digam do sabor de nossas idéias

mas todos passamos ao largo dos pensamentos alheios

tudo na vida parece sem gosto para quem pensa

pois pensar é isto

só sensaboria

20.4.07

170

por vezes o dia se repete de maneira mais leve

é um dia com menos horas

com menos calor menos umidade e menos gente

especialmente nas sextas

a expectativa de ficar afastado do trabalho por dois dias é mais agradável que o próprio afastamento

mas não passa de um logro

mas que me importa

se ao menos aliviou alguns segundos da pena

se ao menos me desviou de mim e de deus por um átimo que seja

se ao menos me deu uma vaga idéia do que seja ter paz

se é que isso existe

se é que a paz possível seja mais que um estado parcial de não-beligerância

se é que um dia poderei soltar todas as amarras e deixar-me ir sem temer nem deus nem o homem nem a natureza

se é que um dia saberei soltar as amarras

o fato de hoje ser sexta-feira é o que me deixa mais feliz

tenho certeza de que o sábado e o domingo não serão nem metade do que deles espero nesta sexta-feira

mas hoje é sexta

19.4.07

169

este mundo é um convite ao suicídio

um logro

um vácuo que nos deixa imbecis em busca do nada além deste nada

essa obrigação de crer que deus não estava de putaria nem de sacanagem quando nos jogou aqui

e de que muito menos ele é um tremendo dum incompetente

de tudo isso resulta somente minha inépcia

ora mas se o problema sou eu então vamos acabar comigo

mas não

tá pensando o quê

que é na moleza que se resolve isto

e que doravante não haverá mais dor porque você acabou

você não é dono de sua existência

você é só usuário dos sentimentos desse ser que você pensa ser

bem menos que nada

um pontinho minúsculo de dor na infinita superfície branca

lá está você mais negro que gato de filme de terror

se tivesse mais talento seria um bom candidato a emissário da morte

na atual condição não passa de mais uma maculazinha na teia dos sentimentos humanos

mais uma

18.4.07

168

como é ruim trabalhar

chato tedioso frustrante

infinita repetição de atos em benefício alheio a troco de nada

ou pior

a troco de salário

então o sujeito come veste mora lá no cu do mundo transporta-se de casa para o trabalho e vice-versa

no fim de semana ele pode encher a cara e ver televisão espancar um filho ou quem sabe tentar fazer outro na patroa

trabalhar não é tudo

é necessário que se tenha vida de trabalhador

o horizonte do trabalhador é uma parede precisando de uns remates no reboco e de ao menos uma demão de tinta

sem dinheiro sem sexo sem paladar sem aroma

acordar para dormir

dormir para acordar

nascer para viver

viver para morrer

morrer sei lá para quê

e entre um fato e outro procurar algum passatempo

e ficar repetindo para si próprio eu não estou pensando no que vem a seguir eu não estou pensando no que vem a seguir

na verdade eu não queria nem estar aqui para ver o que vem a seguir

eu queria isto tudo tão distante

17.4.07

167

a vida tem essa cara de limão amargo

levantar cedo e dormir no trabalho

você pede dinheiro e a vida te dá trabalho

você clama aos céus em louvor ao todo-poderoso

e a vida te dá trabalho

e há os desempregados

premidos pelo ócio sem meios

pelo abandono em que somos envolvidos

que equivale a uma castração

não fazemos parte do privilegiado clube dos que trabalham

não recebemos um fantástico salário mais ajuda-alimentação

você se arrasta na vida

aprendendo a ser nada

se arrasta e se arrasta

e aí quando te dão o diploma a descoberta

meu deus ainda não sou nada

merdíssima nenhuma

não sirvo nem para peso de porta

isso só se aprende vivendo e nada sendo

só a troco de pancada e solidão

aprimoramos este modo de ser

e quando nos damos conta

pouco importa o que sejamos

16.4.07

166

lá um dia alguém se mata

cumprindo seu termo

quem sabe alguém um dia ressuscite

pondo fim à discussão sobre a permanência da morte

aceitando a vida e pronto

saindo para viver

decisão sempre provisória

daí na cabeça o espaço sempre guardado para a pergunta

até quando

sempre se está vivo sob condição

sempre se está vivo enquanto se estiver vivo

mais uma cabeça no meio de uma infinidade de cabeças misturadas e confundidas numa banca infinita de ofertas

aquelas bancas onde tudo é barato e nada vale coisa alguma

cabeças sem paradeiro que não são procuradas por ninguém

indigência

a maioria nem sabendo ser uma cabeça

todas ou quase todas com uma puta duma vocação para ânus

15.4.07

165

nesta terra nunca houve pleno emprego

muito menos pleno salário

e quase ninguém conhece a plena vida

tudo que se tem é a força do dinheiro movendo montanhas e imobilizando multidões

capitalistas previdentes em busca de segurança absoluta e de lucros obscenos

e dinheiro chama dinheiro

e miséria chama miséria

e há misérias várias

mas dinheiro é um só

alegria alegria

vamos trepar com criancinhas

vamos comprar baratinho uma família

o mundo

esta imensa feira

oferece milhões de oportunidades para nos expandirmos

basta dinheiro

e a maioria dos ricos é como a maioria dos homens

podre

digna das mais torpes ignomínias

mas no mundo há mais que homens

além de nós há todas as outras coisas e criaturas a sofrer as conseqüências

de nossos atos divinos

14.4.07

164

palavras tão repetidas

até que não façam mais sentido ou não tenham mais razão

passeio milhões de vezes pela mesma rua sem reconhecê-la

o tempo passa e leva consigo tanta coisa que decretei eterna

o lugar de minhas convicções é um campo cada vez mais devastado

cujas colunas tento manter de pé só para que me esmaguem

elas sempre existiram numa condição de equilíbrio tão delicado

é um arrastado processo de demolição

a que só sucede a construção de uma certeza

não sou nada nunca serei

mesmo assim teimo em buscar material para erguer minha estátua

não importa o que os outros digam

na verdade os outros não dizem nada

os outros estão de passagem e talvez já tenham suas próprias perplexidades com que se entreter

não é tempo de descobrir nada

mas de esquecer certas descobertas

13.4.07

163

faz um frio de congelar genitálias em chamas

temperatura de verão islandês

quão bela é minha cama

e quão distante

em termos de probabilidade

o dever me chama

o carro velho que só dá problema

o emprego que só não me dá salário

grandes desafios

sem dúvida o mundo é outro só porque sou assim

porque gasto uma fortuna para manter rodando uma lata velha

porque perco meu tempo num trabalho que não me dá nada

deus que abismo

se as coisas são como são pelo que fomos

que merda devo ter sido

que merda devem ter sido todos que se socam em lotações suicidas todas as manhãs em busca de uma paga

que desafio doído e bobo

que mundo chato

essa porta inabalavelmente fechada

e esta insistência compulsória

ainda que seja mentira devo dizer

se vimos ao mundo só para descobrir que ele é enfadonho sem esperança

então já posso morrer

mas deve ser parte desta sina

este tempo jogado fora

12.4.07

162

o caminho ainda é o mesmo

só que mais fácil

o que deve ser passageiro

pois tudo que vem vem para pior

verdade

como sói a vida

a menor das dores

a que dói de mais longa data

desde o começo joga-nos no abismo

a verdade simplesmente diz desde o começo o mundo é hostil sem graça e cruel

daí você vem olha e vê

é isso mesmo

agora resta sentar e esperar a morte

quem sabe ela leve a lugares mais interessantes

se a vida é uma loteria

por que a morte não

o negócio se resume a gostar deste negócio de estar a bordo de si

conduzido por vontade alheia

dormir e acordar sempre do mesmo jeito

que viver em rota de colisão

é o que a vida nos concede

11.4.07

161

e o ser humano ainda aguarda o fim

só se for o fim do fim

só doido para ver começo ou permanência nesta coisa que obramos

isso já nem é fé

mas idiotice

nem cegueira galopante pode conduzir a tanto

somente uma obturação extrema

um blindagem completa

só uma pedra para crer nisso

e uma pedra muito burra

não digo que este fim seja o fim do mundo

até porque não acredito que o seja

o mundo é muito maior que uma especiezinha de primatas

mas é o fim do que nem devia ter começado

o homem

e de muitos inocentes que não terão tempo de sair do caminho quando o troço desabar de vez

pois é isto que o homem sabe fazer como ninguém

sofrer

vender ilusões

esse misto de tartufo doutor pangloss e déspota sanguinário

abundado no salão oval

10.4.07

160

não sei para que se vive

talvez para nada

não fomos nós que inventamos a vida

vive-se para comprar e consumir

para morrer

para encontrar a salvação

a verdade é que quando se está vivo

na imensa maioria dos casos

sente-se um incoercível impulso ao movimento

não somos nós

é uma força

talvez o tal do sopro

o impulso vital

que não vem de nós

que é parte de nosso instrumental para a vida

leva-nos à permanente pulsão

a este ir e vir dentro da jaula sem saber se queremos água sexo sono ou deus

apenas para lá e para cá

com medo de dormir e de acordar

compartilhando horrores

dizendo ser fruto da razão o ingresso no labirinto e a longa espera entre os escombros

até que chega o caixão

como um helicóptero de resgate

e aí vem aquela conversa de salvação

e de que o amor de deus

aquele nosso ancestral remoto

e trombamos um no outro

correndo cada vez mais numerosos e desordenados dentro da jaula

9.4.07

159

viver os últimos quarenta anos foi meio igual demais

ao menos da parte que lembro

há outra

que vagamente se gravou

lembranças mais antigas

seres aparições presenças

fascinante e aterrador

um mundo que acelerava meu coração

um mundo que parecia de poucas palavras

absolutamente meu e real

do qual sem perceber fui esquecendo

foi como morrer

e nem notei

simplesmente entrei de cabeça numa porta aberta

eu queria ser adulto

levei-me por aparências

pensei que usaria os poderes dos mais velhos melhor que eles

expus-me ao ridículo

quis vingar-me

feri quem nada tinha me feito

ainda firo

perdi o mundo só meu

em troca deixei de me pertencer

tornei-me adepto da raiva

da justiça mesquinha

do desejo sem satisfação

aprendi a perder o sono e a dormir sem querer

formei idéias a meu respeito e a respeito do mundo

as quais chamo razão

8.4.07

158

dizer que sou quase algo que nunca fui é por outras palavras dizer que ignoro o que sou

é dizer que o máximo que sei é que estou vivo neste mundo

e que este conhecimento não vem de mim

mas dos fatos exteriores

como formamos tantas convicções e tomamos tantos partidos a partir do nada

então começam com essa história de deus

e tudo se divide em dois campos

ou é a razão

ou é o inexplicável

coisas sem começo coisas que terminam antes de começar e ainda assim existem e convivem conosco e nós convenientemente fazemos que não as vemos

e tornamos o mundo estreito

preferimos assim

maçante e governável

um tédio seguro

nascer e morrer sem acidentes

enchemo-nos de remédios e de reflexões insossas

viver com um medo tolerável

isso é viver

7.4.07

157

vivo neste mundo atarantado

olhando tudo que não é meu

inclusive eu

e todo o resto

salvo a montanha de desejos

que todo dia

pesadamente

e eu como bom idiota

sempre no mesmo lugar sempre na mesma hora

a fim de quem sabe

na violência na humilhação na degradação

encontrar sentimentos duradouros

6.4.07

156

decerto que a falta de inspiração me faz falar mal das coisas

mas também como se pode ser feliz e olhar o mundo com bons olhos se não se tem imaginação

se não se pode expressar o mundo em nós com um mínimo de amor e de qualidade no texto

tudo fica enfadonho e igual

perde-se a noção dos sentimentos

só fica uma vaga consciência da raiva

mesmo que o mundo quisesse me reconhecer

o que poderia reconhecer em mim

o vácuo que trago entre as duas orelhas

só se fosse

ou o desperdício de vida que sou

5.4.07

155

que armadilhas a vida ainda

só vivendo

minha curiosidade é nenhuma

cansei

não só das surpresas da vida

da vida

mesmo quando é boa

ainda assim ela é chata

nada é maravilhoso por mais de meio segundo

eis o máximo que a decepção demora para chegar

por isso meu horror a expectativas

elas não passam de um vício

tudo que vem vem para não ser

nem sei o que espero

sei somente que é algo fantasticamente fantástico

que até sei que nem pode existir

espero porém

tropeço após tropeço

o bonde que nunca parte

a boca aberta que nunca fala nem cala

as mesmas diferenças a cada dia da semana

olho-me no espelho

como fiquei velho

e ainda tão igual e desinteressante

4.4.07

154

acho que me viciei em xingar deus e a vida

não que eu queira me retratar

simplesmente gostaria de saber se há outro modo de olhar o mundo

ou se ser é apenas esta prisão

enquanto isso eu e a vida vamos nos matando

mesmo sabendo que este suicídio lento

chamado viver

não tem o peso e o valor de um suicídio comme il fault

é o que posso fazer

o que faria mesmo que não quisesse

a vida nos consome

ninguém nasce caquético para morrer bebezinho

procuro ficar de fora

só olhando

em parte porque me agrada

em parte porque não quero assumir papel algum

o que não me furta desta figuração

justamente o que eu menos queria

mas de tanto sentar na geral e somente ver o jogo

acho que me habituei ao papel de espectador

tudo que desejo a mais é um camarote particular de luxo

3.4.07

153

me acostumei tanto a xingar e reclamar que certas vezes

quando eu gostaria de falar das coisas de modo diferente

não o sei

não sei ser outro

e ser eu é tão pouco

como certas cidades que de tão pequenas usam apenas uma placa

na qual estão escritas duas mensagens

bem vindo e volte sempre

isso é ser qualquer um neste mundo

é a vida

uma tarde demorada quente úmida e cheia de insetos

modorra

levantar e deitar e levantar e deitar e levantar e deitar e

conforme a passagem do tempo

entre uma coisa e outra

ou dormir ou acordar

até que um dia

dizem

não mais se acorda

mas pode ser que eu seja o primeiro ser imortal

e assim sempre venha a acordar

cotidiano ad aeternum

a vantagem de ser vítima desta vida é que se acaba conhecendo o futuro

ele é a repetição do presente

dever ser por isso que existe o calendário

pois assim ao menos alguma coisa muda a cada manhã

o numeral que designa o dia

2.4.07

152

sair da cama neste frio só para ganhar salário e desrespeito

e olha que sou um privilegiado

a vida aqui é assim

quem não tem nada já tem algo

pior está quem mais que nada é doente ou mutilado

não são poucos

então devemos dizer obrigado obrigado obrigado

obrigado por ter posto no mundo nego mais lascado do que eu

pois não importa qual desgraça

sempre há no mundo uma pior que a sua

isso sem dúvida é um estímulo para seguir adiante

quem sabe subir na vida

para assim saber que há cada vez mais gente em condição mais desesperadora que a sua

enquanto você

dono de si

desfila seu privilegiado ser entre tantas misérias sem salvação

e agradece por assim ser o mundo

pois na loteria da vida

até agora

você se deu bem

em vista das mazelas alheias

deus é pai

1.4.07

151

até quando deus

odiento e vingativo como é

vai tolerar minhas blasfêmias

é uma merda como isto se grava em nós

a idéia do onipotente e do pecado

o deus que não pode ser contrariado e que tão fácil se contraria

a mais que repetida ordem para que o amemos

vagamos pelo mundo enlouquecidos

rastejando por salvação

prontos para decapitar quem diz não amar deus

a maioria vivendo com fome

com a dor do esquecimento

próprio e divino

e então um idiota como nós

que se arroga conhecer um caminho do bem

chega junto e joga o caô

diz que sofremos porque fazemos sofrer

engolimos a conversa

saímos cheios de boas intenções

tal qual o inferno

prontos para amar o próximo com o ódio rasgando nossas tripas

e sem nenhum alívio da dor

deus deve ser o único que não sofre as conseqüências das próprias maldades