485

a vida tem estado toda igualmente satisfatória

isso até que aceito

e sem dúvida o dia lá fora é muito bonito

um fim de tarde

de uma tarde calma de domingo

o que sinto agora é algo que não quero perder

como se o silêncio fizesse parte de mim

e eu nunca mais tivesse que dizer uma palavra na vida

nunca mais tivesse que mover o corpo em desacordo com a mente

como se só me bastasse existir

e não ser nada mais do que sou

este momento só seria perfeito se eu não estivesse aqui

como preciso ver tudo sem mim

484

certas coisas sempre nos vêm

queiramos ou não

chega-se a ficar em dúvida sobre quem pertence a quem

quem seja

como cansa esta disputa incessante

o impasse

nunca se sabe ao certo

nem noção do certo

brincando de que a vida parou

e querendo acreditar

até ver-me dobrado pela realidade estúpida

que sempre prevalece

eu devia ficar feliz

pois nada melhor que o pé na terra

desde que a terra permaneça do jeito que está agora enquanto eu desejar

pare comece ou permaneça

apenas quando eu queira

sei lá por quê

falta do que fazer

que importa

eu só queria que este desejo fosse pura vontade

nada pensado

tudo realização

e permanente sucessão de estados

muitas vezes imperceptível

muitas vezes nem sei por quê

483

o que falar quando se está assim

quando a melhor coisa que poderia me acontecer era nada ter que falar

nada

ter o privilégio do silêncio interior

completo

o governo da máquina que sou

não viver passageiro de mim

na cabine de comando de uma nau sem rumo

realmente não sei o que fazer comigo

parece que está escrito em algum lugar que a morte

eis um compromisso infalível

a vida sempre nos conduz a isso

no fim das contas é até meio chato

todo mundo nasce cresce envelhece e morre

alguns podem até não envelhecer ou mesmo não crescer nem envelhecer

mas todos nascerão e morrerão

e quando se descobre que não se está mais crescendo a não ser para os lados na altura do ventre

bem vindo à velhice

mais uma etapa obrigatória na viagem da nau sem rumo

482

hoje estou em cima da hora

acho que todo dia é assim

essa história de hora me cansa

não que eu tenha muito problema em cumprir horários

de modo geral

para um brasileiro

cumpro-os até que bem

e considero-os tremendamente chatos

fazem da vida uma corrida de obstáculos

não intransponíveis

de jeito e maneira

são uns obstaculozinhos até que bem fáceis

mas não deixam de ser obstáculos

coisas cuja superação sempre exige um pouco mais de energia dedicada a algo com que não queríamos nos preocupar

algo de que não queríamos sequer tomar conhecimento

mas lá vai pro registro

mais um obstáculo patético

que me encheu de um pouco mais de vergonha de mim

a vida tem muito disso

propiciar-nos esta coleção de momentos embaraçosos

481

o ócio nunca é bastante

sempre me fica um desejo de mais

que de ócio nunca me canso

a que que a covardia não me leva

se já me trouxe a isto

talvez pudesse me levar a tudo

o fato de ter me trazido até aqui me surpreende

mal mas surpreende

minha nossa mas eu tinha que ser pequeno-burguês

não que seja de todo mau

nunca passei fome e desconheço o desabrigo

mas cacete quanta pobreza de espírito neste mundo

cujo estofo moral provém basicamente da classe média urbana

a pequena burguesia por excelência

e seu culto do aparente

e tinha eu que acabar assim

servidor público quarentão barrigudo e careca

ai

480

não vivo para ver dias nascer

transito na noite

quando tudo por natureza se torna furtivo e pardo

a claridade do dia é um pouco cansativa

ainda que louvável

não espero da noite nada de muito animador

parece-me que noites no máximo

conforme as circunstâncias

podem me causar medos tremendos

e esse não é meu ideal de transcendência

a noite nada tem de transcendental

mas nela a imaginação fica mais solta

até mesmo incontrolável

e podem se inventar as bestas e as besteiras que for

a noite costuma ter menos gente e menos barulho

dá até para se fingir liberdade

na noite dorme-se

o melhor que se pode fazer

sinto-me menos estranho na noite

e um pouco menos refém de modelos de cidadão

talvez fosse ótimo mergulhar em noite eterna

479

e há nos fins de semana estas horas muitas delas

em que fico parado

esperando que a coisa chegue a algum lugar ou que algum lugar chegue à coisa

tentando crer que a terra está em movimento

quando menos espero é noite

mas também eu não estava esperando nada

nem desesperando

não há mais o que tirar de mim

o prazer que espero obter da vida é inatingível

sou um triste

cada dia mais velho

cada dia mais sem sabor

e cada dia posso menos usar o futuro como desculpa

a morte é assim

ou melhor

a vida é assim

não sei por que para mim ela saiu deste jeito

só sei que é

mais que meus medos meus ódios minhas paixões e minhas dores

mais que tudo isso assusta-me esta indiferença

esta frieza e esta inação com que tenho de conviver noventa e nove por cento do tempo

falta-me algo que não suporto mais procurar

gostaria de viver dormindo para sempre

478

tudo é escolha minha

tudo é como é porque assim quero tudo

tenho pleno domínio do mundo

ele todo só brotou desta mente

que eu já supunha não muito certa

mas quem imaginaria dentro de si haver uma besta doentia como eu

olhe o mundo

isto que dizem que criei

onde dizem que vivo porque quero

praticamente tudo aqui foi tocado pelo homem

logo tudo se corrompeu

enquanto houver um de nós no mundo

brincando de recriá-lo

pobre mundo

tratado como uma enorme latrina pelos inventores de deus

pobre mundo

que animalzinho mais idiota você foi acolher

o mundo é uma enorme bola inerme que nada pode contra a estupidez humana

um gigante gigantesco

indefeso

477

se não for eu será outro

se for eu

só serei depois de morto

e daí não tem graça

a glória só vale se podemos desfrutá-la

somos efêmeros

insignificantes

que importa se somos lembrados depois de enterrados com os pés juntos no revertere ad locum tuum

a vida passou

passou-se

acontece em todo momento

com tantos bilhões como eu

sempre há de haver alguns milhões morrendo a cada segundo

bela merda a glória póstuma

eventualmente desfrutada por parentes babacas

tudo tem destino

não me dê o sucesso em vida

posso aceitar isso desde que pelo amor de deus não me seja dada a maldita glória póstuma

não existe perdão não existe depois

as coisas ou são quando devem ser ou simplesmente não são

476

pouca diferença faz

vivendo como vivo

como vive a maioria

saber se hoje é hoje ou amanhã ou depois ou ontem

todos os dias acordar

todos os dias dormir

todos os dias o mesmo prato no mesmo lugar da mesma mesa

que problema pode haver se deixo algum de fora na conta do tempo

o tempo nunca esquece

já fui bebê

a passo firme avanço para a morte

sem nem notar

o quanto que a vida já era boba só fez aumentar

cada vez mais boba e séria

e cheia de pêlos

meu deus do céu como fiquei peludo depois de velho

nem um pouco mais bonito ou sábio

tudo que parece ter acontecido é que aos medos de antes uniram-se os de agora

e todos resolveram morar em mim para sempre

junto com os pêlos

como um desesperador enigma

um enigma cabeludo

que mesmo resolvido não deixa de atormentar

como um dia após o outro todos parecendo o mesmo

475

talvez este dia seja como qualquer outro

é o que costuma acontecer

os dias não variam muito

para dizer a verdade nem sei por que tantos

provável que dois ou três bastassem

para se saber que todos são iguais e nada mais

depois o resto é tudo repetição de repetição

e até que é bom que um dia bom se repita

mas eles são tão poucos

não que o resto seja péssimo horrível

de jeito e maneira

o resto simplesmente é ou tem sido aquele negócio comprido lento e cheio de obstáculos intransponíveis

algo como mastigar um grande pedaço de carne bem dura

a maior parte dos dias é assim

digna de esquecimento

quando dias excepcionais vêm

já fico pensando no que se seguirá

às vezes até covardemente desejo que tudo volte à inenarrável estagnação

caso dos dias excepcionalmente maus

pois é tão raro que algo dê certo

o mais próximo disso que vejo

é a velha vida

474

não sei por que fui bom

nas poucas vezes em que o fui

não passou de bondade putativa

algo feito por fazer

ou tendo em vista algum ganho

se não foi por engano nem por puro cálculo

foi por mero condicionamento

pois aqui dentro não há disso

acho que só sei sentir desprezo

no que dependa de minha natureza

em mim não há bondade alguma

há só meu gosto por poder e destruição

como num vilão de desenho animado

mas não me basta apertar o controle remoto para mudar a mim ou ao mundo

tenho de viver comigo

na riqueza e na pobreza

na doença e na saúde

na vida e na morte

aqui estou

tão completo quanto posso ser

cansado de mim e de minha cara

triste porque a tristeza me é fácil

é só o que tenho

ou ao menos parece ser

do contrário deixo de me perceber

e dentro de mim não há bondade

473

nada mais decepcionante que o mundo

a vida é tão restrita

por todo lado medos

tristes dispositivos de segurança

por trás dos quais se simula a vida livre

e dizer do medo nunca

temos conhecimento de tudo

tudo podemos resolver

talvez haja terrores passageiros

no mais a bem dizer estamos seguros

enchemo-nos de prevenções

a ameaça é inesquecível

os faladores falam do que leram ouviram pressentiram imaginaram ou que nada disso mas mesmo assim de algum modo souberam

a coisa se propaga todos querem saber

e é sob o manto da utilidade pública que enfim o deleite geral é experimentado

pois como desgraça é interessante

ainda mais se não é nossa e nos é posta no colo de bandeja

para montarmos os fatos da vida alheia como um divertido quebra-cabeça

472

tudo se resume a enganos

basta saber como

para que não descubram

na verdade não só isso

logros também

sempre que possível induzir o próximo a eles

é aquela história da bagatela de que não se faz caso

o negócio não é a honestidade

mas o anonimato do que deve ficar anônimo

que chato falar assim

chapado de um domingo recluso

meio sem saber o que fiz

até porque nada fiz

eu não queria um mal específico para um alguém específico

só queria espalhá-lo em doses mínimas

como sementes

contribuições anônimas

talvez meu pecado seja a modéstia

ou o fato de só ter motivos para ser modesto

471

tantas vezes parece que tudo anda para trás

e deveras

conforme o ponto de vista

a vida pode ser um grande retrocesso

ou algo que não vai a lugar algum

nós fazemos nosso modo de olhar as coisas

mas não fazemos as coisas nem o que elas são

é bom manter em dia

de qualquer maneira

nosso conhecimento sobre a mórbida realidade do mundo

seu duro impenetrável e muito provavelmente oco âmago

a se mover sem fazer força

varando o infinito de ponta a ponta

mundo

sob a indiferença das estrelas

um nada entre duas imensidões

a que vai para fora e a que vai para dentro

sem saber se é parede ou passagem ou apenas um vaso de planta ou um capacho

470

essa coisa não passa

fica aí girando e sempre voltando do mesmo jeito

feito boneco pendurado na pá de um ventilador muito lento

rodando sem destino no teto

de braços abertos

cara de que não sabe que não sabe

tornando irregular o giro por falta de contrapeso

não que pareça que as coisas vão desabar

pelo menos não tão já

mas que desagradável observá-las

elas não são o que deveriam nem deixam de algo ser

parece uma morte em vida

algo que não é consumindo o espaço e a energia do que seria

às vezes fico em dúvida sobre se não olho para um espelho

não sei por quê

posso ter certeza

é a matemática que conheço

tudo só se diminui

e o que se vê quando se busca algo de si

é o boneco inerte

pendurado em alguma coisa

ou jogado em algum lugar

469

gostaria que o dia tivesse quarenta e oito horas

besteira

bom seria se o dia fosse todinho para o ócio

todo dia

o dia todo

não importa quanto dure

gostaria de viver num mundo que não me impusesse esta maldita obrigação de trabalhar

um mundo sem conseqüências

em que tudo absolutamente tudo fosse permitido

em que nada nada mesmo causasse dor nem mutilação nem privação

um mundo sem a maldita moral

um mundo sem dor

absolutamente sem dor nenhuma

estou cansado de ser eu e de falar com as paredes

não sei por que continuo aqui

covardia comodismo medo

ignorância

esta triste marcha

do bebê que engatinha ao macróbio que se arrasta

tudo um dia acaba

dizem

eu gostaria de ver certas coisas começarem

468

tenho todos os motivos do mundo para ter medo

e todos para não ter

não sou quem decide isso

se sou não me disseram nem me parece

a bem dizer não faço nem idéia

gelei estatelado diante das duas únicas escolhas possíveis que pude ver

ou do medo me desfazer inteiramente

ou absolutamente a ele sucumbir

talvez até se viva melhor absolutamente sem medo

só se descobre vivendo

só que na dúvida

vá que o medo um dia me faça falta

e eu não tenha nem um punhadinho dele

imagine o medo que vou sentir

imagine o medo que sinto agora ao dizer isto

impensável

um dos grandes prazeres do homem moderno é se borrar todo todo dia

de puro medo

467

mais cedo tive uma idéia que me pareceu boa

esqueci-a ainda bem

não há idéia que preste

vinda de um ser humano

entenda

ser humano bom é ser humano morto

este louvor desenfreado pelo gênio criador pela capacidade inventiva do animal homem

no fim tudo é expressão de um poder destrutivo sem igual

mesmo o que é para bem resulta em mal

é então que tiramos deus da embalagem

batemos a poeira dele e o penduramos na parede e dizemos

ele nos fez senhores deste mundo e só a ele devemos satisfação

e como coisas penduradas na parede nunca falam

somos livres pra fuder com tudo que quisermos

pelo menos até o dia em que coisas na parede começarem a falar

ou até o dia em que surgir um maluco mais insano que nós

mais insano e mais forte e mais sanguinário

provavelmente o chamaremos de deus

por isso que devemos nos esforçar para ser cada vez piores

466

fiquei no meio do caminho

o caminho continuou

algo passou

algo passado fez-me vir ao presente sem ter idéia de onde estou

a vida funciona como um sistema de mútuas violências

difícil saber quando basta

quando se chega a um ponto de acordo entre quem dá e quem recebe

quem dá quer dar cada vez mais

quem recebe também quer dar e muito

todo mundo gosta de bater

somos assim

infernos a se esbarrar por todo lugar

a mais triste das espécies

a que tem mais poder

que se diz eleita de deus

então deus está do lado do mais brutal

eis nossa superioridade

esmagamos tudo que aparece pelo caminho

talvez algum dia surja algo que nos esmague totalmente

até lá seguiremos favoritos de deus

divinos

covardes

letais

465

a vida precipício parece sem fim

só parece

para mal ou para bem

tudo tão envolvente

até esquecemos a queda

a tudo nos habituamos

não vem ao caso quão baixo

tudo

no fim o desejo enorme de tocar o fundo

em busca de algo definitivo

minha nossa como sou insuportável

como gostaria de me ver livre de mim

de toda obrigação

desta covardia

deixando-me ao sabor de correntezas alheias

vivendo como vivo vivo um interminável fim

em que sempre há algo mais a perder

componho-me de infinitos pedaços

vá saber

há trinta anos era-me inimaginável viver até hoje

hoje não me imagino daqui a trinta segundos

464

toda utopia esbarra sempre no obstáculo intransponível

a natureza humana

é intrínseco ao homem cultuar o sofrimento

alheio

o homem não vive feliz se tudo em volta dele estiver feliz

isso o assusta quase tanto quanto sua própria imagem

paz

ninguém a falar mal de ninguém

ninguém a forçar porta alheia

como pode

onde está deus que permite coisa dessas

a vida já é complicada bastante sem que a compliquemos

mas o homem acha que demonstra gênio quando concebe fontes de conflito

vejam como sabemos manipular a natureza para obter artefatos militares

lindo progresso

além de demonstrar um espírito infinitamente superior ao dos que só ficam quietos e vivem em paz

sagrado e sublime são idéias que só nos fazem piores