31.1.07

91

tudo se resumia ao abismo

tudo me foi dito ainda na infância por aquele sentimento

que ficou aqui parado

que aqui ainda está

nada fiz

nada me pareceu útil

eu simplesmente sobrava

fui ser escravo de meus caprichos

resolvi fingir que o tempo era infinito

hoje de joelhos suplico por segundos

não sou dono desta vida

só um usuário a termo

saio de cena ingrato obeso preguiçoso hipertenso e cheio de enfisemas

se eu não fosse eu

não daria um tostão por mim

30.1.07

90

sinto que as paredes querem fazer de mim a carne de um sanduíche

carne gorda

e sinto que não há milagres

que não há almoço de graça

e que o preço é caro

para me içarem deste buraco

sinto que não há dia certo para morrer

apenas morte certa

e vidas erradas

não posso

me desculpem

não posso ser como quero

só como não queremos

espectador de meus erros

domador de mim

há muito devorado pela fera

que lentamente

em franca afronta

saboreia-me a carcaça

perdi

tenha espírito esportivo

perdi e odeio perder

perdi e nem sei o que perdi

perdi e desaprendi de ganhar

perdi o sono

e a fibra

perdi a inteligência

perdi a juventude

perderei a velhice

se quisesse me ocupar por séculos faria a lista de uma mínima fração do que não fiz

perdi até a oportunidade

de ver o tempo passar

29.1.07

89

será que existe algo mais revoltante mais nojento que a bondade

creio que só deus consegue ser pior

tudo na vida tem um preço

e quando o preço tem expressão econômica podemos saber quanto custa verificamos se está dentro de nossas possibilidades e conforme o caso compramos ou não compramos

a coisa funciona assim

agora ponha no meio a porra da bondade

você vê a coisa você a quer você não a pode

é então que surge em sua vida a tal da criatura bondosa pronta a satisfazer seu desejo sem querer nada em troca

e você acredita e você deita e rola e você deseja mundos e fundos

até que um dia

você no auge da dependência

o destino de algum modo resolve dizer-lhe

chega acabou a festa

ou você demonstra amor

ou nunca mais abrirei para você a torneira da felicidade

na vida tudo tem um preço

28.1.07

88

o céu não muda de cor

o planeta não inverte sua rotação

o sol amanhã clareará o céu na hora costumeira

e eu acordarei tarde com as dores e os medos de sempre

o sol não explodirá de uma hora para outra

eu não começarei a voar

nada acontece assim

de uma hora para outra

há a lenta e gradual evolução dos fatos

um grande saco

tudo segue uma ordem

queiram ou não

o antes não vem depois

eu não passo de mim

todo dia lavar a cara na pia do banheiro

e então olhar para o espelho

e esquecer o que sinto quando me vejo

não sei mais contar o tempo

ou melhor sei

até demais

bem mais do que preciso

o rosto no espelho não deixa dúvida

se o tempo parou não foi aqui

que adolescente envelhecido esse que vejo diante de mim

27.1.07

87

estamos todos correndo

correndo porque necessário imprescindível sine qua non

questão de urgência

todos se trombam em seus rumos na vida

deve se encontrar a solução não se pode esquecer o problema

questão de consciência

de senso de dever

a sociedade exige pressa

façamos barulho avolumemos nossa presença

locupletemos as vias com nossos passos

tanto já viemos e voltamos cheios da mais legítima das pressas

nossa pressa ainda salvará a humanidade

quando seja

males sempre há

então é só sair à rua com pressa

tateando o ar

repetindo palavras que juntas ou separadas nada significam e fazendo cara de preocupado

ninguém nunca soube de outros animais como esses que enchem as ruas em desespero

andando sem freio

pois é assim que se vive embora ninguém saiba por quê

26.1.07

86

não fosse contra minha natureza

diria que há alguma felicidade em mim

porque em qualquer um há ora

porque o silêncio me faz feliz

porque a imutabilidade do que é bom me faz feliz

porque a paz é veículo de felicidade

e estar aqui com a janua me enche de paz

ou ao menos me dá mais paz do que já experimentei em qualquer outra oportunidade

o medo torna-se até pequeno

a confiança até excessiva

mas este silêncio

esta harmonia

este viver sem tumor nem temor

não sei o que seria de mim sem ela

sem mim a vida dela provavelmente melhoraria

sem ela eu no mínimo seria ainda pior do que sou

sei lá por que mereço tanto

também não sei até quando

não demora muito estarei velho se antes não me tornar defunto

não sei o que vem depois

25.1.07

85

a anos daqui está um dia que vai chegar amanhã

vivo de crer na distância infinita que me separa dele

mas ele já é um fato inserido no destino

sem dúvidas a seu próprio respeito

o tempo não é como o seguro social

o tempo não é nem como um ser honesto porém mortal

que pode que decerto vai bater as botas de inopino

o tempo é certo

então os momentos tranqüilos esperam sua hora de entrar em cena

e nós aqui correndo feito loucos

ou nos escondendo sem a menor vergonha de nossa covardia

os momentos vêm

entram em cena e saem

o destino faz o que bem quer de nós

depois amassa-nos até nos transformar numa pelota e nos lança ao lixo

e nós aqui a crer-nos senhores de alguma coisa

24.1.07

84

o tempo não passa e não pára

paralisia através das eras

uma tênue incerteza desesperada sobre o sentido em que se movem as coisas

este corpo como quase todos os corpos

cumpre um complicado e irrelevante itinerário entre a maternidade e o cemitério

corpos há que tão logo saem da mãe são despachados para comer grama pela raiz no revertere ad locum tuum

são os que vão direto ao ponto sem rodeios

chegam olham e concluem

a gente vem pra esta porcaria só pra morrer mesmo

então pra que enrolar

vamos logo ao que interessa

pimba

sorte deles

que não perdem tempo pensando sobre o que vão fazer

que é assim que nos tornamos dependentes disto tudo

sob o pretexto da busca vamos atrás do esquecimento e damos voltas e mais voltas até descobrir que não nos esqueceram

23.1.07

83

vocês acreditam se eu disser que minto

eis uma pergunta que só admite uma resposta

eu devia calar a boca e deixar para trás a fantasia de que construí algo

simplesmente fiquei aqui

não fui deixado para trás com nenhuma missão especial

apenas não observei a hora marcada

e mais tarde vi que ela era a única que eu teria em milênios

e olhe que só se passaram alguns deceniozinhos

actio libera in causa

embora eu não pudesse nem de longe supor o que tenho agora

agora güenta meu chapa

roa seu osso duro

ou reze para haver um osso duro

pois o filé já era

a única coisa mole que sobrou foi sua vontade

que você devorou com tanto gosto dizendo para si mesmo

não há de ser nada

haveria de nada ser

e sua pele arde de secura

não dá para sentir movimento no ar

só a fragilidade da existência

e o gotejar das horas

22.1.07

82

não sei por que permaneço

nem por que me retiro

é esta coisa em mim

incognoscível

obedeço a ordens que nem percebo se me são dadas

só por medo da mão terrível

que pode estar em qualquer lugar

a onipresença da dúvida faz-me civilizado

faz-me crer na descrença

pois senão a mão imensa

cumprimento meu vizinho

beijo a mão do senhor magistrado

beijo a mão do santo padre e saio logo de perto para que sua santidade não me confunda com um de seus efebos

porque um dia o juízo vem

e espero estar pronto para admitir todas as culpas que queiram

assim ao menos as coisas andarão mais depressa

e no fim das contas tudo se resume a um único fato

devo sofrer por não ser eles

nasci para receber

eles para dar

tudo por direito sobrenatural

como quis a grande mão

21.1.07

81

de modo geral a programação da tevê é horrível

e os produtos ã venda por aí

nem me diga

mundinho idiota

e olha que consumir é o que de mais interessante aqui há

que o resto

ai meu deus o resto

o resto são coisas que o fato de ter sido criado na sociedade humana privou-me da capacidade de apreciá-las

ou então são coisas sem graça nenhuma mesmo

natureza bons sentimentos amizade

por melhores que essas coisas sejam nenhuma delas livra-nos da dor

enquanto a dor pode fazer-nos esquecer todas elas e mais algumas de que nem lembrávamos

nada a supera

e todas as forças do homem se aplicam em diminuir a própria dor e aumentar a alheia

foi para isso que nos fizemos cópia do que de mais sublime

20.1.07

80

chore por si

sua má sina foi ter sido você

foi ter vivido como se não houvesse diferença entre coisas diferentes

havia

você encontrou dentro de si o obstáculo maior

a muralha de meio palmo

para quem não queria sofrer

como você sofreu

mas agora acabou

vá reclamar com o bispo

que de bispo o inferno deve ser farto

19.1.07

79

é o fim de alguma estação e o começo de alguma outra

em todo lugar

tudo no seu tempo

é o fim de mim e o começo de outro alguém

um corpo estranho em minha vida

sempre uma promessa

até esticar as canelas

numa cama miserável

num quarto fechado cheio de ar viciado

vivendo do favor alheio

morreu aí

não sei se sofreu

é verdade não foi um filho-da-puta

mesmo porque até ser filho-da-puta daria um trabalho incrível

bem ou mal seria um ato de vontade

não carece de choro nem de vela

só de uma vala

18.1.07

78

dia frio como um cadáver

nada desperta

som só dentro da cabeça

é claro

o dia

de uma claridade moderada cheia de cinza

tudo se movimenta como em um cortejo

cada passo detidamente pensando o seguinte

o fim estava próximo

isso só se pode dizer depois do fim

e os movimentos como os de um cortejo

por enquanto sei apenas que indago

a resposta só poderá vir na forma de fato

que não viverei para contar

os outros apenas dirão antes ele do que eu

não posso condená-los

eu também diria isso

e por mais que eu esperneie

é assim e ponto

cada um num mundo só seu a governar-se em conflito com o mundo todo

bilhões de guerras

pequenas e sórdidas

ainda assim sentirei falta creio

se bem que o outro lugar talvez seja tão melhor ou tão pior que este que nem me deixe espaço para pensar a respeito de mais nada

como aqui sucumbindo entre balas e tumbas e um ser que vive no porão mas esta casa não tem porão então ele vive no sótão a casa também não tem sótão então ele está na sala então ele sou eu caralho

17.1.07

77

minhas pernas estão ficando velhas e manchadas

elas são o retrato de dorian gray de minha vida

só que não as encerro num quarto

apenas sob minhas calças

mas meu cabelo ficou branco e ralo

e se olhar bem perceberei mais umas tantas coisas que já não estão no lugar

talvez eu não precise esconder só as pernas

talvez eu precise me esconder deste corpo

ou esconder este corpo numa tumba

já faz muito tempo

mais do que posso digerir

se nada fiz até agora

nada farei até amanhã

é simples

é matemático

eu mundo vida

se disso nada resultou

nada resultará

há coisas que nunca quis

e tantas outras que nem que eu quisesse

e ainda deve haver as que nem imagino

como foi pobre como foi falto de substância viver

direi defunto

não quis melhorar nem piorar o mundo

apenas deixei-me

dormi acordado

16.1.07

76

sempre o tempo

sempre o tempo

querendo me atropelar

um dia ele vai conseguir

enquanto isso não acontece sigo correndo em vão

vencendo a disputa que estou fadado a perder

ele prevalecerá

sempre presente

contado e odiado

o que não o comove nem um pouco

ele não é ninguém

nem nada

só a evolução de um contínuo até prova em contrário sem começo nem fim

senta e chora zé mané

o tempo não desfila na avenida

mas dita quanto vai durar o desfile

e quando virá o fim

mais certo que o começo

lá vai o tempo

eterno devir

a inconcretude do agora

15.1.07

75

eta mundinho besta

monte de gente à toa

não aceitamos a brincadeira toda

e tampouco queremos largar o brinquedo

por que tem que ser assim

a voz roufenha sempre ali sinistra em regozijo repetindo repetindo repetindo

um dia vai acabar

um dia vai acabar

e eu não terei vivido mais que uma vida

não terei sido mais do que eu

porra sacanagem

por que tanta imaginação e tão pouca realização

isso não está certo

e além de tudo já estou morrendo

e quando morrer de vez tanta coisa vai ficar aqui

deixando de ser eu

juntar os trapos de um morto

dar-lhes nova vida

porque morto cheira a armário

na melhor das hipóteses

morto não tem importância

ainda mais um morto assim como eu

que nunca foi muito vivo

minha nossa dêem-me um unzinho só subterfúgio

para eu voltar à eterna embromação

14.1.07

74

todos à mesa

jesus era antes de tudo um sonhador

judas por sua vez um prático

judas em busca dos resultados que as circunstâncias lhe permitissem

enquanto jesus aceitava o que a vida lhe mandasse sem entretanto abrir mão do que almejava

como exemplo de sua filosofia o cristo beliscou a bunda de uma garçonete que passou a seu lado

uma garçonete que nem era lá essas coisas

mas é o que a vida me manda replicou jesus

notando aquilo pedro mandou suspender a bebida do salvador pediu a conta e deu um jeito de tirar a chave do carro do filho de deus

judas aproveitou a deixa e saiu dizendo dá licença que preciso resolver um negócio

cristo virou para pedro e reclamou quem é você para mandar na minha vida eu bebo quanto quero e dirijo quando quero garçom mais uma e cadê a chave do meu carro porra pedro você tem vergonha de mim você poderia me negar três vezes antes de o galo cantar

a conta veio salgada e pedro comentou o mar não está para peixe mas quem autorizou o leonardo a pintar nosso retrato vocês não sabem que ele cobra os olhos da cara

13.1.07

73

tudo aquilo por que não sabemos o que sentimos

ocupa-nos mais espaço que qualquer coisa certa

o certo torto

certo porque existe em nós como dúvida perene

sempre há movimento

sempre obstáculos

sempre se repetem os caminhos

entranhas que ficam hipertensas

não há água que as refresque

até que numa hora indolor surge uma dormência ou um formigamento

dá para saber que não se vai viver para sempre

isso você sabe e aceita

grande coisa

mas ninguém concebe viver torto horrendo ou morrer aos quarenta

novidade

só comigo não poderia acontecer

mas com fé em deus

recupera-se a saúde e pode-se voltar a pisar em tudo e em todos

12.1.07

72

viver por um fio

viver por um frio

viver por qualquer porra

mas viver

sem mortes completas ou parciais

sem ser assombração

sem conviver com açougueiros

sem farmacinha no lar

viver é cruel

a ignorância essencial dos vivos

ignorância que penso não ignorar

que penso conhecer

seus limites não são cognoscíveis

saber não saber não conduz ao saber

só confirma o que os fatos gritam

nunca estamos certos

flutuamos no mar das probabilidades e nos agarramos a qualquer toro que bóie mais perto

quando vemos agarramos um programa televisivo de domingo à tarde

ficamos mais burros

dormimos mais nocivos

11.1.07

71

o mundo de fora é mais fácil que o de dentro
e olha que não gosto de mundo nenhum
mas parece que o mundo de fora me odeia menos
ou no mínimo me é indiferente
dentro de mim existe algo que não consigo ver
uma besta
de que nunca me aproximo
mantenho-a encurralada por vias transversas
num canto qualquer de mim que me permita ignorá-la
mas sempre vem um dia em que ela consegue escapar
e até que eu a conduza de volta a seu cativeiro
há fatos
quando alcanço prendê-la novamente
percebo que o incêndio já não carece mais de extinção
tudo já se queimou
queira ou não é hora de dormir
durma ou não vem a hora de acordar
e não ter como passar ao largo e não poder dizer não não fui eu que fiz isso ou melhor fui eu e não fui foda-se agora tem que pagar

10.1.07

70

eu sabia que hoje seria um dia horrível

não sei por que nem como nem onde mas seria

um dia difícil de digerir

lento pesado volumoso

um dia para ficar andando de um lado da casa para outro sentindo o tempo não passar

ficando com as mãos sobre os dormentes braços da poltrona

a olhar olhar olhar

mais nada

a descoberta de que o número no calendário pode representar uma grandeza maior que qualquer imensa infinitude

ainda é hoje ainda é hoje ainda é hoje

e amanhã ainda será hoje

certeza

claro imbecil ainda é hoje sempre é hoje ontem e amanhã e depois ainda são foram e serão hoje

aqueles monstros e aquela velha descabelada que invadiam meu quarto

o sangue não pára

aquele som de vertigem

mundo

9.1.07

69

nem sei se vou viver este dia até o fim

mas quero falar dele como se fosse passado

primeiro bebi demais

antes ainda perdi o emprego e depois de tudo cheguei em casa com todo tempo do mundo para gastar em atividades insossas

como se não bastasse estou só e nada me assusta mais que eu próprio

o emprego vai voltar presumo

minha mulher também

e a ressaca vai passar

no entanto o medo

este medo de mim mesmo do que me habita

algo me diz que isto pode ser tudo

menos coisa que preste

afinal por que me crer diferente do que vejo ao meu redor

por que ficar no deixa disso pensando que vou parir um anjo neste mundo de infernos

eu não presto como todos meus semelhantes e ponto é isso

agora tudo que tenho a fazer é sentar e esperar a fera

8.1.07

68

será verdadeira essa história de que sou apenas uma parte de um ser que dorme

se for será que esse camarada não poderia ter sonhos mais agradáveis

alguns milhões de dólares a mais alguns quilos de banha a menos

um tanto a mais de prazer e muito menos trabalho

além de umas outras coisinhas como a reversão da calvície e a regressão da idade sem perda de massa cefálica

porra tudo caminha num só sentido e ele não é nada animador

que diversão pode haver nesta história das coisas obtidas com sacrifício e luta

será que o meio é o fim e o que se busca na verdade não seja o que se alcança mas as agruras sofridas para alcançá-lo

que imbecilidade

e todo dia caio do mesmo jeito na mesma vala

7.1.07

67

o esquecimento tem que ser completo

uma inconsciência

a memória cair em pleno coma

e eu feliz

nem sei com que ou por quê

grande importância

se sou feliz sem o conhecimento foda-se o conhecimento

foda-se tudo

foda-me eu se vou ficar me preocupando com esses bostas que como eu vivem mais perdidos que bala no morro

e todos querendo superar uns aos outros nas maldades que é capaz de fazer alguém movido por um ideal um propósito uma ânsia de se destacar

do que o homem não é capaz

tudo que queremos é um sempre crescente monte de poder grana e prestígio

6.1.07

66

quando deus inventou o tédio ele sentia decerto uma raiva filha da puta

e então ele deve ter dito vocês vão ver agora como é bom não ser isto nem aquilo não ser quente nem frio não sentir ódio nem amor

tomem

vejam como é bom sentir nada nada querer nada enxergar nada dizer nada fazer

e pronto de repente o homem parou olhou em volta e percebeu que não era mais capaz de enxergar graça em coisa alguma

para completar o serviço deus colocou no homem a semente da criação

e assim o homem inventou o sofá e a televisão e esparramou-se no primeiro e cravou os olhos na segunda

e assim o homem descobriu um novo modo de vida

e deus ao ver aquilo falou mas esse ser humano é uma boa duma besta mesmo

e o mundo se encheu de televisores e de sofás e de gente que por horas a fio fica com a cara diante da caixa luminosa que emite som descobrindo um mundo grande e impenetrável além da merda de viver sob o patrocínio de sabão em pó

5.1.07

65

deus criou um criadouro de monstros
e sem saber o que com ele fazer
varreu a sujeira para baixo do tapete
e deu uma de quem nem fez a cagada
saiu de fininho assobiando
tanto fez tanto fez que acabou por esquecer do troço de verdade
quando lembrou e foi dar uma olhada minha nossa
a sujeira tinha criado vida
e se dizia imagem e semelhança de seu criador
deus não deve ter gostado nada da história
mas era forçoso admitir
a caca era a sua cara
então ele disse
não posso desejar-lhes nada pior do que o que vocês já são
e foi pro boteco beber suas mágoas
o que no caso de deus realmente era a única coisa a fazer
afinal ele é o criador
nunca o criado
ele não tem pai nem mãe nem mulher nem amigos
só um bando de puxa-sacos inúteis que se dizem seus filhos e quiçá uma chocadeira
então deus encheu a cara bem enchida
e no auge da carraspana gemeu para o copo
puta que pariu que merda

4.1.07

64

cantam grilos no córrego

noite

até amanhã de manhã

salvo mudança inesperada

nada nunca impede que deus um dia diga

pois é cansei dessa porra do jeito que está a partir de hoje a noite será dia e o dia será sei lá o quê será qualquer merda que eu queira que diferença

sei lá como deus pensa ou fala

se é que ele pensa ou fala

talvez ele tenha esquecido o fogo ligado e por isso fervemos demais

daqui a pouco esta droga explode e deus entra correndo na cozinha e grita caralho como fui esquecer o fogo ligado e verá este mundo estragado e nos jogará no lixo

fazer o quê

deus dá de ombros e começa uma nova mistura de ingredientes

3.1.07

63

dinheiro não é tudo

é verdade

também há os títulos as jóias os imóveis os automóveis os direitos patrimoniais

dinheiro é felicidade

ou ao menos uma tristeza bem mais amena

dinheiro é paz

os conflitos ficam por conta dos advogados que o dinheiro paga

e o que o dinheiro não pode

ora nada conheço que possa mais que o dinheiro

o poder do dinheiro já me deixaria bem contentinho

viver sem dinheiro é um desafio imbecil

chega dessa história de deus amor e amizade

2.1.07

62

há uma sensação um sentimento uma ânsia angustiada desesperada ao ver o ônibus passar e saber que ele era o último

o único

ele ou nunca

e saber que apesar disso a vida não acabou

mas que também ela nunca deixará de ser você parado sentado na parada

sabendo que nunca

sabendo que ainda que ser assim não seja eterno

demorará uma eternidade para que isto acabe

sabendo que o maior bem é ignorar é não desejar

é nunca saber que há o sempre que pode nunca ser

e ali no ponto nada de interessante passa

na verdade não passa nada mesmo

ou em vista do que passa melhor seria que nada passasse

e que não se estivesse nem se fosse

1.1.07

61

perdido deixei-me na rua

impelido não sei por que movimento

alguém algum dia começou a se mover

e ao encontrar outros corpos pelo caminho não se interrompia

e ao colidir punha os outros corpos em movimento

e assim começou uma movimentação generalizada sem que se soubesse por quê

todos se moviam porque todos se moviam ora

de modo estúpido porque assim todos se moviam

e assim essa ignorância se transmitiu através das gerações

mediante pancada e admoestação

até que se ocupassem totalmente as ruas

ninguém sabia por quê

só que devia ser assim

direito adquirido dever cívico tradição ancestral mania compulsiva

o certo é que a pressa é sagrada