30.6.07

241

as coisas por aqui vão assim

não há muita escolha

acaba-se fazendo uma errada

tudo vai por água abaixo

muito embora nos pensemos eternos

certos enganos assumem ar de catástrofe

quando de uma hora para outra a verdade explode em nossas faces

nada somos

normalmente não temos idéia do que isso seja

29.6.07

240

quero conhecer uma vida sem medo

que não me faça pensar no medo

em que não existam desejos

seria meu último desejo

não sei que espécie de mudança é essa

ou o que ela implica

nem se existe

se bem que tudo existe

até o inexistir

um belo dia eu me veria completamente vazio de mim

e não teria mais com que me preocupar

mesmo que isso significasse o fim de algo

que bom seria

a inexistência parece aquele tipo de coisa

cuja ansiedade que temos em iniciá-la

só é superada pela intensidade do desejo que temos de concluí-la

nesse meio-tempo ficamos aqui

inventando novas formas de sofrer

esbaldando-nos com migalhas de saber

procurando um jeito de fazer os outros pagarem nossa conta

como seria bom deixar de desejar

28.6.07

239

não entendo esta coisa de sentir

que me lembre

sempre que um sentimento vem

ele não me cega

ou me deixa tão cego que nem sou capaz de notar a cegueira

mas parece que parte de mim nunca é parte do sentimento

e ainda assim

como que por força de hipnose

esta parte se deixa levar e atende ao estranho que lhe cobra submissão

é tão automático

tão frio

eu estou lá

vendo tudo acontecer como se fosse passageiro deste corpo

ao mesmo tempo que faço a coisa acontecer

seja o bem seja o mal

depois digo que fui vítima de mim

que como o herói macunaíma enterrei minha consciência

só que ao revés dele

não sei onde

não sei nem se um dia a tive

se consciência é este olhar passivo com que contemplo minha escravidão

de que vale esta bosta

27.6.07

238

dias quentes

este desejo de que o mundo pare

de que todos digam basta

porque nesta fornalha não se pode amar nem odiar

não se pode buscar nem repelir

não se pode nem sentir um desespero decente

falta força para tudo

resta a apatia

o desejo de ser uma pedra insensível

que não mine suor até por onde não lhe existam poros

que não pense

que não tenha premências

nem sequer vagos desejos

mas que simplesmente exista inabalável

ainda que dinamitem a pedra

até o derradeiro extremo ela mantém a compostura com perfeição

nada nada mesmo pode demovê-la de sua fleuma absoluta

frio ou calor

chuva ou seca

a pedra é invariavelmente pedra

ponto

eis uma coisa que se explica por si só

nada precisa vir em seu auxílio

26.6.07

237

as dores alheias são fáceis de tolerar

justamente porque não nos pertencem

é fácil superar o que não nos desafia

é fácil viver sem sentir aflições

difícil é ser o que sofre

saber que o tormento é só seu

que os outros mal e mal desejarão sequer fazer idéia do que nos acontece

é assim que somos

loucos para compartilhar nossas desgraças

loucos para passar ao largo das desgraças alheias

ninguém

salvo nós mesmos

disse que devemos fazer isto ou aquilo

mas sempre temos que ver o caminho

antes de trilhá-lo

nem sempre há o que ver

então inventamos uma direção

concebemos necessidades e buscas

fingimos sofrer e viver

e vivemos sofrendo

pois até hoje não provamos que não existimos

mas apesar da montanha de conceitos

sob ela há uma base que um só pode remover sem fazer força nenhuma

continuamos tão idiotas quanto o primeiro

apesar do cenário e do enredo

25.6.07

236

quando certas coisas pegajosamente aderem a nossa vida

confundimos tormento com felicidade

tratamos com desprezo a paz

deixamos de lado tudo de bom por pensarmos ver

e na verdade talvez até vejamos

o que não sabemos é escolher

temos diante dos olhos tão-só nossas mãos sequiosas

e por dentro algo como um encantamento

que nos conduz feito autômatos

vivemos acorrentados

e cremos saber o que fazemos

na maior parte das vezes é difícil saber que se é cego

porque o cego não vê

e assim não sabe a diferença entre ver e não ver

se todos em seu redor também são cegos

não sabe a diferença entre ouvir e não ouvir

se todos em seu redor também são surdos

não sabe o que é sentir

se todos não sentem

então institui-se a normalidade

e o exequatur divino

e todos se conformam em ser assim

de que outro modo haveria de ser ora

24.6.07

235

dinheiro

afrodisíaco rejuvenescedor embelezador aprimorador de personalidade

poder vida felicidade

automóveis aviões mansões e uma porrada de coisas mais

jóias eletrônicos roupas perfumes diversão

tudo

com dinheiro eu não seria independente em termos absolutos

mas teria minhas dependências atendidas

isso é o máximo de independência que se pode conhecer

mais do que isso

só se perdermos todos os nossos desejos

presumo

o que mais há é gente pagando qualquer preço por qualquer dinheiro

aceitando qualquer humilhação

mas dinheiro tem que ser felicidade

e como se pode ser feliz buscando-se a infelicidade primeiro

dinheiro tem que vir de graça

tem que ser um lucro fácil

nada de frutos de duras penas

deve-se desfrutá-lo

nunca lastimá-lo

nem escondê-lo

23.6.07

234

eu enlouqueço cada dia mais um pouco

cada dia

um pouquinho

mais de mim

vai ficando louco

e é a loucura pura

triste

dos que acham que têm alguma importância para o mundo

é só

como se este enlouquecimento fosse afetar o mundo todo mais que qualquer outro enlouquecimento

como se ser louco fosse tão raro

que merecesse uma atenção especial

ser louco especial não é para qualquer um como eu

mais um

que mal oculta do mundo sua mendicância

um maltrapilho com a bagana de um charuto caro a rolar-lhe entre os beiços

um jeito assim de coisa perdida

outro daqueles

22.6.07

233

quando se começa errando o dia não se está no dia

como a vida é terrivelmente plana e invariável

sempre do mesmo jeito

eu falando do que já falei e falarei

pensando sempre sempre igual

maneiras de matar

maneiras de gastar dinheiro

maneiras de exercer o poder que não tenho

todas as coisas que nunca farei

todas as coisas para as quais fui natimorto

e há esta merda de sentimentos

não bastasse tudo ser assim

ainda precisa haver emoções

moral senso de dever obrigações ódios

pesos que me levam ao fundo

com um senso de derrota

como se a vida não devesse ser assim

como se não a quiséssemos

há vidas e vidas

cada um tem a que merece

a morte

é só parar de viver

21.6.07

232

amar a deus e pisar em todas as outras coisas

eis o caminho da salvação do homem

seu caminho para o paraíso

assim lhe prometeram

é o que ele vive dizendo

o homem quer salvar o mundo se o mundo for bonzinho com ele

caso contrário pobre do mundo

pobres das pedras das águas de todos os seres

o homem bota pra fuder

ai de quem contrariar seu divino desígnio

não sabe o que o espera

o filho de deus nas vestes do cão

o flagelo supremo

a coisa insignificante

20.6.07

231

a velhice é uma condição passageira

depois vem a morte

e quando chegamos a pensar que somos

descobrimos que fomos

para que passar por isto

por que não olhar antes de comprar

tudo nos é emprestado

nem sabemos se nós a nós pertencemos

e queríamos de verdade ser os donos desta coisa cuja verdadeira natureza nos foge

ora parece um hospício

ora um circo

devoramos dias

ou os dias nos devoram

as coisas nesta vida têm um ar meio canibal

tudo são limiares entre a vida e a morte

não sabemos de qual saímos

não sabemos em qual entramos

criamos um consenso

aqui vida lá morte

do qual sempre duvidamos

estar e ser

como discutir a diferença de um para outro se nem temos idéia de nossa condição

na falta de quem nos dissesse ao certo

resolvemos decretar o fato por nossa conta

aqui é vida

vivemos em dúvida

morremos perplexos

19.6.07

230

não tenho muito do que reclamar no momento

a saúde dá para o gasto

o salário está em via de melhorar

meu lar está tranqüilo

não tenho aflições por dinheiro

estou sem palavras

este planeta gira muito devagar

e tem muita gente

e todos são tão iguais

não adianta inventar justificativas

é assim que sinto

não sei por quê

mas se tenho algum sentimento

é este

como se os conceitos se formassem em minha mente por obra alheia

porque eu nada sei desta história

nada

não faço idéia

meu único conselheiro é o medo

ou tem sido

ele me diz mate e eu mato

ele me diz devore e eu devoro

ele me diz corra e eu corro

ele me diz cale-se e eu me calo trêmulo

pensando em minha pele secando num varal

e agora vem isto

tudo está bem

e não sei o que fazer

18.6.07

229

hoje acordei sem querer

se sorri foi por acidente

tive que sair em busca de uma justificativa para minha existência

hoje acordei com medo

sabendo que não basta acordar

sabendo que é tão simples ser bom

que até esquecemos como é

sabendo que ter medo de nada vale

e que ter medo é tudo que tenho

eu hoje gostaria de ter acordado

somente isso

e ter visto que algo em mim despertara

não sei por que penso que algo em mim despertará

talvez isso seja o que chamam de fé

se fé for paz

então quero ter fé

se é que fé se tem assim

simplesmente por se querer

se é que fé não se adquire por herança genética

pois por muito tempo eu disse ter fé porque muitos me diziam que eu devia ter fé

por muito tempo acreditei na fé alheia

e repeti que eu tinha fé

e agora simplesmente duvido

que diferença faz

dizer que tenho ou que não tenho

17.6.07

228

por que damos tanto valor à vida

quando a vida não nos dá nenhum

tanta tristeza e tanta alegria

tanto falatório e tanta crença

é tudo um prédio

que erguemos para receber os outros

vejam meu palácio

e eles dirão

se alguém vier

que palhoça ordinária

e vem a vontade de gritar na cara de todos

vocês sabem o que é isto

isto sou eu

ao que talvez eles respondam

se alguém se der ao trabalho de ouvir e ainda mais de responder

pois então olhe ao seu redor

veja

todos construímos monumentos suntuosos

para que os outros os olhassem com admiração

e todos ouvimos o mesmo que você

e todos dissemos

mas esta porra sou eu

e todos aprendemos que o monte de palhoças ordinárias ao nosso redor eram outras tantas construções suntuosas que nossos semelhantes fizeram de si

para você o único palácio é sua palhoça

acorda mané

seja bem-vindo à humanidade

sente-se para o banquete da nobreza esfarrapada

melhor ficar esperto para não ser o prato do dia

16.6.07

227

não sei contar histórias

vejo o mundo sem meandros

a vida caminha reta na minha lembrança

a tortuosidade fica guardada ilegível

montes de coisas que sempre se escondem quando acendem a luz

vou vivendo entre os normais

tantas nossas semelhanças

não há por que ser diferente

só sou assim

um pouco mais ou um pouco menos que a média

como qualquer mediano

difícil surpreender

afinal de tudo há no mundo

menos o mundo

no fim das contas tudo que há é muito porque é tudo

mas não basta

tanta chuva e tanto sol

quando já se viu um já se viram todos

um dia talvez achemos até os orgasmos pouco interessantes

são os líquidos corporais

as contrações e os relaxamentos

os sons

o que há para relatar em tudo isso

que alguém sofreu viveu e morreu

o ser humano é tão chato

por que falar dele

15.6.07

226

as coisas enquanto apenas desejadas

fingem-se claras para se manterem obscuras

as coisas nunca se revelam totalmente

ou nunca revelam bastante de si enquanto não nos tenham embaraçado completamente

enquanto não nos fazem escravos

pois depois em nada relevará conhecer nosso verdadeiro objeto de desejo

já somos seus

já não temos escolha nem vontade

e no fundo de tudo

depois de tanto

vemo-nos nulos alheios parte de individualidades outras

tudo de nosso que sobra no fim das contas

é o desejo

esta boca escancarada ganindo noite adentro

estes dias de insônia dispersando pedaços de vida

e uma goteira

entre tudo que parece tão permanente passeiam ratos

selecionando restos

bem ali

junto da gente

que se curva

perante colossos econômicos

14.6.07

225

caso eu chegue a algum lugar na vida

será que perceberei que cheguei

caso eu chegue a algum lugar na vida

será que a algum lugar chegarei

eu gostaria de poder ver as coisas que faço enquanto as faço

pois quase sempre o que acontece é eu ver somente os efeitos das coisas que faço

e não raro eles doem

e a gente avança cego nestes corredores

querendo ver

videntes cartomantes

o que for

e mesmo que não vejam também

nós os buscamos

pelo menos não se dirá que não tentamos

e além do mais assim garantiremos um repositório de culpas

compramos paz de espírito por sermos irresponsáveis

como se deveras fôssemos obrigados a ter alguma responsabilidade por aquilo que não conhecemos

apenas pagamos a conta

por fatos que nem sabemos

e convencemo-nos de que deus nos pôs no mundo para resolvermos alguma espécie de charada

deus cuja existência causa mais dúvida que certeza

deus

que só aumenta nossa perplexidade

13.6.07

224

que maravilha o ócio a vagabundagem o governo da preguiça

e no entanto vimos a este mundo trabalhar horas por dias por anos

engaiolados em ambientes superlotados

tratados por presunção do pior

objetos do benefício estatal

devendo fazer prova do óbvio

expostos ao exame das autoridades

pois cometemos o pecado da pobreza

caímos na tentação de achar que temos direitos

mas isso é próprio da espécie

se alguns dos mortais torna-se deus

ele sabe que é seu dever sagrado humilhar a plebe

o zé-povinho taí pra isto mesmo

pra ser pisado e viver rindo e chorando e pedindo mais

é a lógica

castigos para todos

prêmios estupendos para nenhuns

quanto ao mérito

pode enfiá-lo no cu

vivemos muito bem assim

os miseráveis têm prazer em admirar os opulentos

os opulentos têm o prazer

é o mundo

ame-o ou deixe-o

ninguém faz falta

caso não tenha fundos

ninguém é de menos

mate-se por favor

12.6.07

223

sentar e ficar esperando que brote em mim o gênio

como é bom não ter que provar nada ao mundo

nascer poderoso por direito hereditário

morrer sem abalos

sem sentir medos nem privações

desafios são um saco

o medo

de tanto ser sentido

torna-se enfadonho

uma coisa besta

embora seja a que mais mantenha o sabor de novidade

de desagradável novidade

o resto vai adquirindo um aroma que já se distingue a distância

coisas que sabemos como serão

e que nem por isso sabemos evitar

vamos ficando velhos

e nem por isso sábios

vamos ficando velhos moles e medrosos

e não entendemos por que se deva ter compaixão de um velho

até que velhos supliquemos por compaixão

como se alguém tivesse a obrigação de nos tolerar

velhos são frágeis

mas quase todos foram como os adultos que os olham

e agora velhos acham o mundo duro

11.6.07

222

todos vivem pensando em sexo

não fazem nem parcela do que pensam

e não querem nem fração do que fazem

certas coisas não mudam

a ânsia de afirmar-se

sem sombra de dúvida

assim como o prazer que tenho em sentir o cheiro de sabonete em minhas mãos recém-lavadas

mas certas coisas não se lavam

procuramos viver como se essa não fosse a verdade

recriamos o mundo

e o mundo continua com cara de mundo

submetemos um torrãozinho de terra

e já nos inchamos com a certeza de que o próximo passo é o universo

10.6.07

221

é foda todo dia ter que encontrar algo diferente para xingar

ou pelo menos um jeito diferente de xingar a mesma coisa

na maioria das vezes falho

e termino babando quase que as mesmas palavras de sempre só que numa ordem diferente

isto sou eu

isto é o que tenho para dar

nem mais nem menos que nada

acordo todo dia e vejo sempre a mesma cara no mesmo espelho

e penso comigo

puta que pariu a coisa não muda o mundo gira e eu virei uma estátua numa praça abandonada da qual nunca ninguém teve notícia da existência

ninguém nem sabe que isto existe

e se soubesse procuraria esquecer

salvo se aqui fosse o último de todos os lugares

salvo se não houvesse mais vaga nem mesmo no andar mais baixo do inferno

salvo se em lugar disto a multidão não preferisse morrer

9.6.07

220

a ânsia de mudar me devasta

a mudança é uma catástrofe

não sei ser

aonde quer que eu vá

encontro o gosto pela ocultação

desejo de mal querer

obediência à força

todos se acomodando no espaço que não lhes tomam e buscando meio pacífico de esbulhar o próximo

mas temos motivo justo

lutamos por nós

enquanto o resto do mundo o faz pelo mero prazer de ser mau

8.6.07

219

não fale

tire a roupa apenas

não faça pedidos

quero sua escravidão

nem sei se sexo é tão importante

quero obediência

o mundo aos meus pés

ao menos o mundo que vai até os limites do terreno desta casa

nada em minha vida vai muito além disto

e no que depender de mim

foda-se o resto

só quero tirar da reta

e cair na boca certa

somos tantos

maior que a multidão é seu desespero

e sua arrogância

e sua triste aparência tão cheia de adornos e certezas

o pior animal do mundo

além de o mais chato

deus não teve compaixão

simplesmente disse

vou criar a coisinha mais idiota dos universos

e então ele tinha que ser triste

bem triste

e chato

chato pra valer

uma massa devotada ao falatório à intriga à traição à empáfia

sou mais um deles

e estou cheio deste pesadelo

lerdo mover sem saber

7.6.07

218

nada ter a dizer

como isso é comum

por que havemos de ser máquinas de manifestações

até somos

e é cada manifestação mais babaca que outra

como o ser humano gosta de dar palpite

de mostrar-se bem articulado sobre os assuntos mais imbecis

lá vêm palavras palavras e mais palavras

decerto que também há os silenciosos

e o mundo seria tão melhor se o fôssemos todos

mas criou-se o mundo do falatório

ponha um microfone na cara do macaco-homem e veja só

veja a pose dele

veja a atitude compenetrada de quem vai despejar milhões de vacuidades por segundo

é o animal estúpido de sempre

este serzinho egocêntrico que não vê nada mais além do nada que ele é pensando ser cheio de substância

ou ao menos ansiando sôfrego que os outros ocos pensem que ele pensa

o ser humano não passa disto

a velha carroça vazia cheia de alarido a buscar outras carroças vazias

6.6.07

217

por que há no mundo tanto babaca tolo

com impulsos supostamente adultos

supostamente senhores de si

supostamente donos de alguma coisa

sem fazerem idéia de como o mundo os vê

sem a noção de que o mundo não é parte de suas mentes

vão agindo segundo seus olhos e contra todas as circunstâncias

às vezes se adestram à exaustão em institutos de elevadíssimos prestígios

e assim pensam que se tornaram de melhor espécie

e que não precisam mais encarar seus iguais como iguais

de um modo geral todos morrem entupidos de trabalho de crime de desgosto de drogas de ambição

e no fim sentem-se obrigados a dizer que valeu a pena

também se dissessem que não valeu pouca diferença faria

vivemos porque vamos indo

segundo a maré

somos humanos

o que é muito para nós

e nada para o cosmos

que com qualquer sobrinha de material fazem-se sacoladas de seres

o espírito é uma bagatela diminuta

qualquer porcaria apta a dar um sopro para iniciar a máquina

5.6.07

216

na maioria das vezes a sensação é de apenas ocupar espaço

de apenas servir de contrapeso ao movimento do planeta

como se fosse um elogio à passiva contemplação

em inúmeras ocasiões pouco faço além de respirar

quase sempre estou em processo de digestão

não que isso me satisfaça

mas me dá a idéia de que participo de algo

ao menos da cadeia alimentar

até hoje mais como alimentado que como alimento

mas sempre há o dia em que entramos no cardápio

por mais convictos que sejamos de nossa supremacia

sempre vem o momento

em que ficamos na outra extremidade do garfo

seja de um decompositor

seja de um predador

em princípio somos tão comestíveis quanto uma vaca ou um porco

talvez não tão gostosos

mas aos olhos de quem não nos veja tão divinos quanto nos cremos

bem podemos nada ser além de o prato do dia

simplesmente aqui

gastando tempo

ocupando espaço

como se algo fosse suceder

como se o dia não fosse nascer

porque não nascemos

4.6.07

215

viver oculto por todos os cantos

como qualquer aberração

escondendo o que nem se sabe se é para ser escondido

simplesmente porque se vive com o medo por conselheiro

simplesmente porque me disseram que há fantasma por todo lado

embora a única assombração que eu conheça seja deus

a perseguir-me por meus labirintos

fruto de meus pais

fruto da sociedade

expressão de vontade

formada antes mesmo de eu ter vontade

vivo com o mínimo necessário de tranqüilidade

o mínimo que me permita não sucumbir

o mínimo que já quase me mata de marasmo

mas não posso deixar de seguir os conselhos do medo

o apavorante futuro vem chegando a galope e se eu não estiver prevenido

todo borrado de medo

o medo mesmo me devora

o medo que nada esquece

3.6.07

214

não sei o que pensa quem tem poder

talvez nunca saiba

e isso me doerá

pois não me importa assumir novos ônus

aceito riscos intoleráveis

a título de farejar a felicidade

aceito viver longe da paz

apenas em troca da admiração geral

aceito qualquer dor

que me deixe longe da dor essencial

da qual nunca estarei distante

sobre a qual nem quero mais pensar

que o fato de não esclarecê-la

converteu-se em tédio

numa cansativa martelação cotidiana

que é nada vezes nada

a ocupar-me espaço

e estes parcos neurônios que ainda são meus

que ainda não se tornaram feudo do estado nem das empresas

não tenho muito espaço para pensar

vá lá que também não tenho muitos pensamentos

mas não gosto de sentir-me loteado

não gosto de ser parte deste processo de reciclagem que me faz de uso comum

eu devia pedir só um pouco de paz

desde que não fosse a paz sem graça das igrejas

2.6.07

213

mais uma vez lá vou eu para a seleção de reses

até que sou uma boa rês

longe de ser esplêndida

mas sobressaio graças à inépcia circundante

ao menos obtive uma modesta vaga numa cocheira

quem sabe isso me livre da mendicância

nem por isso me sentirei menos mendigo

menos na fila da sopa

menos com cheiro de rua

ainda temo que descubram quem realmente sou

quem nem sei que sou

e quem sabe o que sou capaz de fazer

todos os dias dormir sem saber se não há um estranho na casa

todos os dias gente contando como é ser pego de jeito pelo destino

e viver aguardando o que nem se sabe

mas que se vier

por todo lado gente geme de ânsia de destruir o mundo

demolir devastar

tudo que sei fazer é fugir

só não sei do quê