364

talvez eu não esteja apenas louco

talvez tudo seja como eu mais temo que seja

talvez a arrogância sombria do sucesso seja luminosa como os bem sucedidos dizem

talvez passar por cima de um punhado de pobres num veículo de luxo seja mesmo uma experiência transformadora

não sei o que pensar

quando todos parecemos mais estúpidos que a mais estúpida estupidez

tudo fica com um sabor de abismo

tudo baseado em imbecis fundamentos racionais

gerar riqueza é tornar o rico sempre mais rico

isso é perfeitamente sadio

embora soturno

embora recenda a oitocentos bilhões de doenças

todos caímos

o que importa é quem bate primeiro no fundo

para amortecer a pancada dos que vêm depois

eis a diferença entre ser pobre e ser rico

363

talvez a vida só seja tolerável com inspiração

talvez a vida só se torne palatável se cremos piamente numa elevada mentira

porque o jogo é todo feito de mentiras

porque isto aqui tem cheiro de nada

tem gosto de nada

tem cara de nada

é nada

e dói

362

de manhã sempre penso em como seria bom dormir para sempre

viver somente no mundo cambiante e difuso do sonho

como seria bom não haver eu

não haver este limite

o homem e seu ridículo conceito de coerência

suas declarações de princípios

sua estupidez tão pensada

penso em quantas vezes ainda cometerei o erro de aceitar viver como vivo no mundo em que vivo e ainda ter um medo pânico de perder a felicidade que não tenho

361

vivo pensando em vidas diferentes

em que eu não seja eu

em que haja possibilidade de as coisas serem interessantes

em que o que me prenda a esta vida não seja simplesmente o medo de morrer

que me faz viver aqui pensando em milhões de lugares melhores

que faz brotar em mim bilhões de desejos a cada instante

como é horrível esta consciência

que só serve para fazer-me consciente da dor

mesmo quando a dor não se faz presente

tudo já tem um sabor mais que provado

o prazer foi convertido em sólida pedra

e jaz a milhares de lembranças distante

360

não sei por que ainda duvidamos de que nossas crenças são absolutamente imbecis

de que tudo não passa do fato de o homem não suportar que seu semelhante seja mais feliz do que ele

querofóbicos e queromaníacos

tudo é uma questão de momento

tudo advém de nossa recusa doentia em admitir que somos o pior que poderia acontecer a este mundo

só que o mundo não é idiota nem egocêntrico como nós

o mundo é mundo

não fica a conjeturar se poderia ser melhor ou pior o momento que ele vive

359

o potencial do homem para o mal

é muito próximo do fenômeno

a dor impressiona muito mais que o prazer

basta comparar o efeito de um tapa ao de um carinho

basta ver quanto desejamos retribuir a dor e quanto desejamos retribuir o prazer

causar dor causa-nos prazer

verdade que também há a via contrária

mas parece que o masoquismo já de longa data

anda em baixa

basta criar uma lista de erros que nos dê respaldo moral para sairmos por aí infligindo castigos do arco-da-velha

e a consciência permanece levinha

no fim das contas tudo se resume à tão antiga e legítima busca da felicidade

358

quanto certas coisas não presenciaram sem nem saber

por exemplo a cadeira em que aquele grande imbecil sentou para tomar aquela grande decisão imbecil que determinou o curso da história

talvez a pobre cadeira sobreviva a todos que estavam no mundo quando aquilo aconteceu

mas nunca deixará de ser cadeira

mudamente acolhendo bundas

virtualmente idênticas

357

falar cansa

continua-se entretanto

coisas sem a menor importância

como um sexo tão repetido

só se fica naquela

contando os jumentos que passam na rua

no fim das contas não sou nada diferente da pior pessoa do mundo

quem sabe a pior pessoa do mundo não seja eu

só duvido disso por causa de minha vocação para a opacidade

sou simplesmente este amontoado de monotonia

já vi várias listas telefônicas mais interessantes

no fim sou só isto

um saco

uma constrangedora presença

ninguém tem coragem de me dizer

aonde vou apenas implanta-se aquele silêncio

tão denso que é quase sólido

ninguém quer ser assim

é o tipo de coisa que se descobre de uma hora para outra

quando já se alastrou em nós

nunca saberemos como éramos antes

356

quem disse que viver é fácil

ou idiota

ou mentiroso

como seja

enche-me de inveja ouvir coisas assim

ainda que minta quem o diga

fosse a vida algo fácil

não fosse ela tão obsessivamente repetitiva

fosse a vida um momento de confiança e amizade

fosse este um lugar em que se pudessem fechar os olhos e deixar correr

as dificuldades embotam o interesse quando se afiguram insuperáveis

como a obrigação de césar e cônjuge

tudo que aparenta ser é

no fim das contas devemos no mínimo fingir que afastamos obstáculos

é deixar deus

a víbora suprema

injetar-nos mais um pouco de seu veneno

porém não é deus que nos mata

ele só nos deixa com vontade de morrer

um monstro horrendo

hediondo mesmo

eis de onde vimos

só pode

para fazer o que fazemos

o absoluto é absolutamente paralítico

355

concretamente inconsistente

quanta falta do que dizer

não tenho nada

natal vem natal vai e eu pior que mal

o mundo todo continua desabando

mas o mundo é tão chato

que importa

eu também

sou um pé no saco

fodamo-nos

no fim das contas é o que acontece mesmo

ninguém disse que eu podia ter expectativas

eu só queria saber o que é isto

como acalmar isto

como deixar de ser isto

parece que antes que qualquer coisa aconteça

isto deixará de ser-me

apenas descobrirei a óbvia verdade

que toda verdade é óbvia

não passo de uma coisa

ao dispor de uma força

nem imagino o que fazer

a voz me diz

nada

e me dá as costas

o mundo permanece à tona

quem afunda sou eu

e sinceramente nem seria tão mau

não fosse o fato de que afundo tão lento

354

a gente não percebe quão rápido passa o tempo

rápido e vazio

com quarenta e tantos sinto-me o mesmo imbecil que eu era com seis

o raciocínio agora é um pouco mais elaborado

o corpo cresceu e embagulhou bastante

mas a história em essência continua idêntica

sinto-me sobra e o mundo não me desmente

sei que nenhum prazer me fará esquecer a dor que a vida já me deu

principalmente a dor que eu causei

sou como todos aqui

certo de que a única causa por que vale viver é a minha

doravante é só rezar por uma morte cedo rápida e indolor

e para que nada exista depois daqui

por favor deus

já demonstrei quanto de covardia e baixeza há em mim

deixe-me fora disto

não quero mais ser

353

não sei por que quero voltar no tempo

minha juventude minha infância minha adolescência

como foi ruim

horrível mesmo

aprender a ser um bom louco

todos aguardando apenas o primeiro deslize

a permanente predação

na falta do que fazer

na falta do que ser

que isto aqui é um permanente tédio

verdadeira morte cerebral

uma agonia que começa na concepção

e ninguém sabe quando termina

pois talvez haja vida depois da morte

e talvez essa vida seja uma merda igual a esta

talvez haja mundos como este

ou ainda mais imbecis do que este

tudo é possível

mas mesmo que um outro mundo qualquer fosse mil vezes menos imbecil que este

ainda assim seria um mundo imbecil pra caralho

352

tenho que fingir que não sou simplório

que não vivo inundado de pavores risíveis

que cada dia vem e vai sem me abalar

que vivo cego pela iminência da morte

cada momento que vivo lembra-me a vida que levo

a morte que terei

e o deus pendurado na parede na casa de alguém da minha infância

quanto anseio de esquecer

ainda me sinto como sempre

sem vocação para a felicidade

e a única mudança que admito em minha vida

é a da vida para a morte

o resto é resto

deus e meus semelhantes

todos a encher-nos o saco reciprocamente

se o inferno é pior

então o inferno é obra de gênio

351

viver já é uma responsabilidade extrema

um peso sem igual

não digo insuportável porque suporto sei lá como

tranco-me no banheiro sento na privada fico tão-somente encarando a parede

tão-somente tentando não pensar

o que é muito diferente de não pensar

parece que existo o menos que posso

mesmo assim existir é um peso

para certos seres e coisas olho e penso parece que ele apenas é

nem sei por que penso isso

nem sei por que também eu não pareço apenas ser

como se o imensurável compartimento de conflitos que arrasto também não fosse eu

350

vivo com medo

nem por isso deixo de viver

vivo mal

viver custa muito caro

vivo na beira

mero espectador do cortejo

e sei quanto isso me dói

sou escravo da megalomania

se tenho alguma fé

é na enormidade

tudo deve ser enormemente aparente

é tudo que sei

precisamos ocultar esta pequenez intrínseca

quando as grandes tragédias vêm

ou enlouquecemos ou vivemos

nuances e meios-termos não passam de frescura

meu tempo vale mais que filosofações

mesmo que seja para coçar o saco diante do televisor

antes de tudo devíamos todos calar a boca

e rogar a deus que nos privasse da razão

façamos uma grande inovação

sejamos canalhas sinceros

ao menos não sejamos desonestos com nossa desonestidade

349

vou repetindo tudo todos os dias

das mais diversas maneiras

tornando a refazer o que já estava refeito e que depois de mais uma vez refeito ficará igualzinho a como era antes

o pior é ver através do véu

é descobrir que tudo não passa de uma mesma coisa

que nunca vem a nós

presente vezes e vezes sem fim

o mundo lutando para ser sempre igual

sempre no fim do círculo

animais experimentais

cremos que encontrando a saída do labirinto

seremos premiados

as coisas passam muito rápido

e são substituídas por elas mesmas

tão rápido que nem podemos ver

esse é o nosso modo particular de ser

nenhum mais rotineiro

nenhum mais como nós

tudo não passa de estúpidos hormônios

disso fazemos uma monstruosa montanha de horrores

348

esta coisa inútil chamada consciência

avisa-me dos fatos mais sem relevo que se passam ao meu redor

do que não quero ter notícia

do que em nada mudará minha vida

eu sou isto

com esta cara

com esta tristeza

isto e pronto

não vou mudar esta maneira

sou como qualquer humano

cheio de excremento na barriga e na cabeça

o ódio que sinto de minha espécie coloca-me em conflito ético

o que me faz ter ainda mais ódio de minha espécie

só mesmo um animal como o homem para ter conflitos interiores

soubesse eu que nunca teria poder algum contra a dor

mas para dizer-me isso a consciência de nada serviu

a consciência só veio quando eu nada mais podia fazer para me livrar de mim

347

as coisas

depois de feitas

ficam

o momento que passa é passado

só serve como peso

nesta excrescência chamada consciência

346

depois de tanto tormento

encontrei mais tormento

permaneço aqui

essencialmente a mesma bosta

esperando a inesperada morte certa

certo de que vou sofrer

certo de que vai doer

como agora me doem as certezas

saber que tudo um dia acaba

sem que de nada se tenha provado

desejo e engano

345

até um certo ponto

parece-me

vive-se envolvido numa espécie de tolice essencial

decerto há quem já venha ao mundo sem o véu da suprema ingenuidade

aquela que nos faz sinceramente hipócritas

comigo não foi assim

nasci com crenças

ou pronto para absorvê-las

e só muito depois de estar locupletado delas foi que notei

eu não sabia

não tinha a mínima idéia de onde nada daquilo vinha

simplesmente engoli a conversa

e um belo dia me vi na defesa de coisas que sequer conheço

um belo dia vi que minhas crenças talvez nada tivessem a ver comigo

e caí em profunda descrença

uma certeza de fim de mundo

a bem dizer talvez o mundo ainda nem começara

na verdade nem sei se posso ser sincero

pois não sei do que sou feito

é pura bobagem mas nem sei se existo

344

bem difícil entender essa história

mas aqui é assim

tem-se uma consciência que só serve para fazer-nos sofrer

a nós e aos que nos rodeiam

vive-se para isso

dizendo-se que a consciência leva-nos à salvação

a salvação

na verdade a única salvação que pode haver

é a inexistência

o simples existir já é uma penitência insuportável

a única salvação possível é não estar aqui nem em lugar algum

é não precisar de deus nem do diabo

é não ter uma consciência para gerar tormentos a cada mínimo instante

para lembrar-nos a cada segundo da morte da fome da doença da insônia da solidão

a salvação é inexistir

é não participar deste mundo em que todos os comportamentos já são conhecidos

é não viver para não se dar a deus o prazer de humilhar-nos até a mais completa

exaustão

343

no dia da justiça

a justiça não funciona

isso é bom

pois assim cometem-se menos injustiças no dia da justiça

quem sabe não se poderia instituir no dia da justiça também o dia de deus

então deus tiraria uma folga

e o mundo talvez tivesse uma oportunidade de ser feliz e de descobrir o bem de que tanto falam esses religiosos sacanas

aliás religioso sacana é pleonasmo

como seja

deus poderia deixar

por um momentinho que fosse

de encher nossos sacos

de dar-nos lições

de mostrar-nos o quanto dói afastarmo-nos dele

deus poderia deixar-nos em paz por um dia

juntamente com a justiça

e com todas as sábias instituições que cuidam para que o mundo permaneça uma bosta

e dar-nos a chance de encontrar a felicidade

ainda que só por um dia

342

há aqueles momentos em que eu gostaria que deus existisse

só para ter algo em que projetar todo o ódio que sinto

e confesso

tenho certeza de que deus nem ligaria

nada que eu faça pode atingi-lo

e o fato de eu me sentir bem ou mal também em nada o interessa

somos apenas coisas

objetos

bonequinhos com que ele talvez brinque de bang-bang casinha ou coisa que o valha

o universo para deus deve ser uma espécie de miniatura

cujas peças ele as põe do modo que bem lhe prouver

e tenho certeza de que em nada incomoda a deus alguém dizer as coisas que estou dizendo

ele nos faz sofrer e finalmente nos mata só porque considera legal praticar coisas do gênero

que demais

quem será que me infundiu a certeza de que eu tinha alguma importância para o mundo

quem será que me fez crer a mim indispensável

341

quantos bons propósitos não podem morrer

diante de uma privada entupida

quanto não se poupa num mundo em que as coisas funcionem da maneira devida

quanto não se perde

só para fazer funcionar

este mundo que não funciona

essas máquinas fabricadas tão direito

para dar defeito

que o único defeito imperdoável é a perfeição

tudo deve ser problemático não só para manter a dependência do usuário

mas para que ninguém descubra a felicidade prometida

um mundo sem problema seria uma perda de identidade insuportável

um mundo sem problema só poderia ser um mundo sem humanos

então não seriam necessárias soluções

sem o homem o mundo simplesmente giraria e tudo mais aconteceria

até que um dia acabasse

quem sabe

coisas e seres existiriam ou inexistiriam

sem que o homem fizesse a menor falta

340

tenho medo

muito

do que lá fora

do que aqui dentro

sempre algo

especial para o momento

muitas vezes nós

sempre com nossa certeza absoluta de sermos diferentes de nossos semelhantes

ao praticarmos nossas patifarias

isso vive em nossas mentes quase como um ideal de vida

como uma missão

algo que heroicamente deve ser sustentado frente a tudo e a todos

esta capacidade de criar situações de que resulte inevitavelmente prejuízo a outrem e

quem sabe

lucro para nós

que fascinante o ser humano

como ele é inteligente e capaz de criar conflitos a partir de nada

que fascinante a humanidade

com seu talento infinito para a violência

mas tudo sempre se faz em defesa de ideais

e mediante mortes de terceiros

339

como é chato lutar segundo regras

sempre há o mais forte

as regras nunca o contrariam

como se algo ou alguém ou sei lá o quê

sempre tivesse a natureza a favor de si

como se toda essa coisa

aparentemente tão impessoal e aleatória

tivesse sido montada para o benefício de poucos

como se o resto do mundo devesse aceitar se foder em silêncio

o depósito do discurso incessante nunca está vazio

sua porta sempre fica aberta

e ele é permanentemente despejado dentro da cabeça

assim o tempo todo

já se confunde com o silêncio

o qual nunca conhecemos em sua inteireza

apenas

quando temos a quietude possível

pensamos

o silêncio deve ser isto

só que sem este falatório

338

se me perguntassem por que xingo tanto deus e por que tanto o nego

que mais eu poderia dizer

se estivesse disposto a ser honesto

senão que é porque creio nele

ou melhor

que é porque tenho necessidade dele

e é assim

como levamos a boca ao peito logo que deixamos o útero

como somos vencidos pelo sono depois de horas de vigília

como necessitamos afeto e comunhão

assim iniciamos um dia nosso namoro com o intangível

e passamos a querer torná-lo tangível

e cada vez que nosso suposto intangível se torna tangível muito bem

vemos que o intangível continua intangível

talvez por confundirmos intangível com inexplicável

há inexplicáveis que se tornam explicáveis

mas o intangível sempre será inexplicável

pois mais que apenas inexplicável

o sol já foi uma divindade

hoje é só o sol

nem por isso tocamos o intangível

337

dia de chuva

que saudade do ócio

de tempos que não vivi

em que me sentia a salvo de toda ameaça

em que eu nem sabia o que era ameaça

em que eu nem sabia ser paz o que eu tinha

em que eu nem sabia possível a perda da paz

saudade de ser o que nunca fui

supremo absoluto

um tirano feliz

um ser ou um não-ser sem necessidade de satisfações

e sem estas filosofices imbecis e vãs

talvez me digam bastar que eu seja eu

isso não se traduz em palavras

não existe um manual de instruções sobre o funcionamento do ser

o mundo gira

fica-se velho

e ou se é ou não se é feliz

ou se cala ou não se cala esta pulsão

a boca voraz

o paladar gasto

e o desejo

incessantemente

se deus queria criar um mundo sem paz

parabéns

se não

então fodeu-se

336

hoje descobri que estou mais velho

que estarei menos dias aqui

que cada vez se tornará mais evidente o que de melhor e de pior em mim

hoje encontrei a definitiva solução

é calar a boca e sentar num canto

e nada esperar

tudo que não sei fazer

tudo para que sou biologicamente inepto

nunca conhecerei o êxtase supremo

a imaginação e o mundo são universos incomunicáveis

tudo que posso é entregar-me à carne até a morte

pois viver é este desespero por um deus

por um ponto de apoio que sempre esteja lá

nada é para sempre

mas isto que sou ou que deveria ser

é o único simulacro de eternidade que posso conceber

como na política institucionalizada

escolho o que é menos distante da idéia

e vejo que tudo que trago em mim

é muito distante do que posso fazer

sou um estrangeiro

um estranho

até para minhas próprias entranhas

335

a vida não passa de um esforço imenso e vazio

sempre se buscando evitar um desastre

sempre se contornando a dor e se dizendo que se deve perdoar

sempre sentindo o peso insuportável sobre os ombros

e a persistente indisposição física

os detectores de pecados

e os entes sacros

deus pendurado na parede

e todos dizendo que ele é muito bonito e muito legal

pois do contrário

desmoronaria o universo

todos correriam desvairados pelas ruas

vítimas da falta de fé

todos perceberiam que a fé não move montanhas

apenas silencia imbecis

que ficam ao largo do caminho

à espera de deus num ônibus celestial

a fé é uma expectativa imensa

cheia de certezas infundadas

é uma droga cujo efeito

quando passa

deixa-nos na pior das ressacas

a realidade

334

ter fé é ser conivente com a sacanagem que o mundo nos apronta

é viver com deus botando-nos na bunda e ainda crer que isso nos conduzirá a um mundo melhor

é dizer que gostamos de comer merda só para ver se param de pôr merda em nosso prato

é dizer que é meio o que perfeitamente pode ser fim

é crer que conhecemos todos os modos como as coisas acontecem

tudo para silenciar o desespero de saber que nada se sabe

tudo para ocultar a incerteza sobre como de fato são os fatos

tudo para não admitir o temor de que as coisas sejam como mais tememos

ter fé é renunciar à lucidez ou à possibilidade de lucidez

com medo de cair na loucura oficial

certificável

com medo de que nosso semelhantes nos achem perigosamente diferentes

ter fé é agir em estado de necessidade

que pode muito bem ser putativo

é ser fisiologicamente incapaz de aceitar a vida como ela é

é não suportar a existência e toda sua incoerência