31.5.08

577

tantas vezes parece que tudo temos

e ainda sentimo-nos sem nada

porque tudo que temos não passa do possível

do consentido

daquilo que nada vai mudar em nossa vida

tudo que surge desaparece

tudo que desaparece nunca ressurge

então é isto

permanecer aqui

surgido para desaparecer

assistindo a coisas surgindo e desaparecendo

o que sinto é o lamento das coisas

o prazer que termina

o começo do fim

o meio do fim

o fim do fim

o presente passa

o futuro passa

o passado nunca passa

é a coisa mais presente

cravada na alma

o que fui sem querer

o que quis ser e nunca fui

o que nunca pensei

sou minha jaula

mais um obstáculo nesta vida

30.5.08

576

talvez mudemos e nem notemos

talvez o que não mude seja minha percepção

este olhar talvez só saiba ver a imagem fixa

enquanto tudo em torno

enquanto o mundo

enquanto os próprios olhos que olham

a vida vai passar

e nem saberei o significado do que digo agora

esta sensação

de que o que se passa sempre é o que não vejo

sou um pedaço de coisa qualquer na correnteza

29.5.08

575

esta contemplação sem graça

é fruto de mais nada saber

além de fazer isto

com estes dois olhos

e com o corpo que os acompanha

dias inteiros

não há remédio

esperando que o nunca aconteça

um pouco de vida um pouco de tristeza

tão desproporcionais o prazer e a dor

esta tristeza de ser triste

não sei por quê

só cumpro ordens

e quero viver mesmo sem querer

viver em mim sem sair de mim o tempo todo

não viver por bem

querer porque querer é o que queremos

ponto

não é prazer nem dever

talvez seja ser

28.5.08

574

a vida é um fato injusto

um jogo perdido

no qual ainda por cima se pode ser feliz

onde está a maldita paz

a voz que me veio com promessas

foi a de meu semelhante

a dizer-se supremo

criado pelo supremo mais supremo

que nunca vi

nem ouvi

nem reconheci

tudo que vejo é a intolerância

tudo que vejo sou eu

tão monstro quanto qualquer um

a dizer-me melhor que os demais

tanto quanto os demais

27.5.08

573

acho que é assim que a vida vai nos deixando

conforme vemos cada vez mais que os fatos pensam por nós

cada vez mais convencidos

de que o que mais temos

são desejos

apenas assistindo à rotina operacional da máquina de graças e desgraças

ela simplesmente funciona

às vezes contra

às vezes a favor

ela só gera os fatos

ou não

e segue cega

26.5.08

572

na vida nunca devia faltar vida

nunca devia faltar sabor

onde será que tudo se perdeu

tenho esta sensação

em algum lugar tudo se perdeu

não sei por que parece

mas parece

ponto

não posso me dar ao luxo de explicações

a vida é esta morte estranha mesmo

vim aqui para ser este rosto sem nada

no meio desta massa sem nada

em busca de certezas quem sabe

de qualquer droga que me faça esquecer

que tudo que vejo é igual a nada

céu e inferno são tudo a mesma merda

25.5.08

571

o mundo está ladeira abaixo

e acelerando

todos em busca das maiores vantagens

todos certos de que o barco vai afundar

todos prontos para pular fora e de longe assistir ao descomunal espetáculo

repetindo consternados

antes eles do que eu

deus essa máquina sem sentido

sem nenhum juízo de espécie alguma

simplesmente se movendo

para todos os lados e em todos os sentidos

bem e mal sendo questão de onde se está

quando o rolo compressor vem

tudo que se precisa é saber de antemão quando a coisa vem

e preparar o cenário

e jogar os corpos para o repasto

e se colocar a salvo

a vida não demora muito

a morte é para sempre

como tudo que não se quer

24.5.08

570

que complicado

tudo

a vida e a morte

amor e ódio

amizade e inimizade

se há desejos também há repulsas

e deus lá

com a cara colada no vidro do aquário

fazendo caretas aqui para dentro

horrendo

somos coisas

tiradas e postas conforme um desígnio que nunca será nosso

este poder tão pequeno

mesmo assim nos permite estragar tanto

questão de tempo

deus é chato

e letal

muito mais que o diabo

que ao menos é sincero

até quando é falso

dele se sabe o que esperar

enquanto deus

para deus o pecado é a existência

que ele mesmo nos dá

23.5.08

569

nem sei o que mais me atinge

solidão ou ignorância

só sei que grito num deserto

e nem sei se isto é um deserto ou um cemitério ou uma rua no centro de uma imensa cidade na hora de maior movimento

só sei que ninguém me ouve

nem eu

o mesmo se diga de meu abismo

nem sei se ele existe

não faço idéia do que acontece

se subo se desço

se estou no chão ou pregado na parede ou pendurado no teto

difícil saber o que não sei

mais ainda quando nem sei o que sei

existência e solidão

duas coisas que nunca deviam andar juntas

a existência e seus conflitos e seus desencontros e todos os sucedâneos de bem-estar

deus por que tudo tem que ser

e os amigos que se vão e todos os gestos torpes que cometemos

o contraste entre bem e mal

eu estou cansado

cansado demais

22.5.08

568

acordar cedo e ver o sol

ter que engolir tantos tropeços e arrastá-los

eis a vida

dizem

por mim eu já teria deixado de existir

nesta e em qualquer outra dimensão

bênção que tanto implorei

a fim de não mais houvesse a iminência da dor

a desgraça seguinte

a fim de não mais ver homens crescerem

em sua pequenez

basta de infinitos

21.5.08

567

quero enfiar a cabeça no imenso buraco chamado vida e descobrir a maravilha de viver

coitado de mim

coitados de nós

sepultados em nossas entranhas

trocamos sensações por palavras

repetidas tão inúmeras vezes

não tem jeito

nada nos faz deixar de sermos nós

e daí inventamos deus

o desmentido de nossa natureza

e nem por isso

continuamos os mesmos

só que passamos a sofrer um pouco mais

e a causar um pouco mais de sofrimento

20.5.08

566

não sei se eu esperava que a vida fosse divertida

acho que desde o começo tive medo

não me recordo

cedo ou tarde descobri-me num mundo

uma ilha

nem sei onde está

se dentro ou fora de mim

digo-me a todo instante que estou me perdendo

que realmente há um monstro

mas talvez seja isto

talvez eu seja o abismo

talvez eu seja o monstro

um quadro triste

enegrecendo a sala

logo eu

19.5.08

565

dia

passa no tempo

nem sempre em minha mente

tudo em volta é paisagem

mais próxima ou mais distante

talvez futuro decerto passado

que não houve

na maior parte esta espera

talvez decerto o que não se sabe

saia como se sonha

sem este sabor de tristezas ancestrais

sem mais perda de tempo

sem perguntas

18.5.08

564

talvez a diferença entre vida e morte seja mínima

talvez nenhuma

talvez a paz

talvez o fim destes sonhos estripados

com as vísceras expostas minguando sob o cegante sol do engano

porque não me dispo de mim

porque não morro

porque não alcanço

não sei como é viver

a não ser que viver seja isto

17.5.08

563

o sol não chega a mim

por mais que eu me mostre

tudo nunca passa desta fria troca de olhares

cá entre nós

não existe outro mundo

senão aquele em que os homens vivem entre si

matando-se

em redor do qual o sol gira

e o mundo gira ao redor de nós

de que vale viver louco de tantos desejos

que só crescem

não se satisfazem

ocupam tudo

enchem tudo

enchem meu saco

e a vida não muda

e a vida e a vida

ela não passa ela não passa

e um dia acaba

não sei se tendo começado

ela gosta de sangue

de corpos esquartejados

a vida este delírio

que passa

sem que se saiba

16.5.08

562

mais outro

daqueles

cês sabem

talvez haja muitos mais

talvez seja o último

de um modo ou de outro há muito que perdi a noção de valor

não sei se sou fruto pendente ou pendido

se estou maduro ou podre

há esta impressão

de que não serei de proveito algum

senão para os decompositores

senão para o deleite putrefaciente

inevitável

salvo para as múmias

como deus e os faraós

salvo se nos lançarem no vácuo do universo

sementes sem berço

também não sei que porra tem a ver essa história de preservar uma espécie tão babaca quanto a humana

meu sofrimento é questão de justiça

e sob tal ponto de vista ele é até bem pouco

que o homem nada merece além de sofrer

ele que não tem limite algum quando o assunto é causar sofrimento

15.5.08

561

aqui estou para me repetir mais um pouco

só mais uma folha

só mais um dia

não é muito

para quem não é tão pequeno quanto eu

às vezes é tão difícil gostar da vida

só não é mais difícil que abandoná-la

ainda quando não tenha mais sabor

viver pode ser de uma crueldade absurda

um permanente abandono sem nenhum remorso

de que só não há esquecimento na mente do abandonado

a condição a que chamamos nada

em que só vemos a nós e a nossos medos

e nos sentimos estorvos de nossas próprias vidas

não quero saber por que é assim

quero esquecer

e quem saber dar um beijo numa desconhecida

só pelo risco de ser acusado de tarado

ou de ser acolhido com ardor

mas o mais provável

é que minha sina de abandonado

faça-a olhar-me com espanto medo e compaixão

dando-me as costas e me esquecendo

14.5.08

560

decerto que não vivi tudo que se pode viver numa vida

nem viverei

nunca

mas já vivi o bastante para ter uma razoável idéia de como é viver

tá certo

que me lembre nunca tive mais que esta idade de agora

mas creio já haver formado uma idéia de como serão as coisas doravante

espero estar errado

e se eu estiver errado

que tudo seja melhor do que eu esperava

espero que a vida ainda seja capaz de me surpreender

e que a surpresa me dê disposição e vontade de continuar vivendo

mas sinto aqui bem dentro de mim

que nunca deixarei o pessimismo

e que nunca serei objeto de estupendas sortes

e pior de tudo

que nunca serei apto a olhar e a dar valor aos pequenos prazeres

acho que dentre todos sou o único a suspeitar de que estes sejam sinais de uma alma mesquinha

os outros devem ter certeza

nunca serei mais do que eu

isto é tão pouco

13.5.08

559

ninguém me fez nada de mau

ou fez

sei lá francamente

e nem sei se tem importância sabê-lo

ilusão ou realidade

eu só queria o fim disto

e a oportunidade de experimentar a vida olhando para o que nela haja de bom

não sei em que isso me faria melhor

do bem só sei o que os outros me dizem

a vida

como a conheço

não foi feita para mim

não sei de que outro modo

como um indigente

olhar perdido

sentindo o peso da imensa mão

não sou dono nem do ar em meus pulmões

nem das imagens em meus olhos

nem de meus pensamentos

não sei por que deve ser assim

simplesmente é

e no mais há este cansaço

esta ânsia de parar de ter dúvidas

e de viver sem pensar na morte

sem almejar vinganças

tudo tão longe

12.5.08

558

manhã esquecimento

o frio oblitera-me a percepção

não sei por que parei de dormir

nem mesmo sei por que me deixei nascer

minha vida como a de tantos é viver diante do muro

crendo-o horizonte

como todos

e lá um dia ser devorado

esquecimento

a condição dos imbecis em paz

deus na parede

manufaturado

morto qual múmia

de todo modo deus é um tormento

a falta de paz escrita em tudo

somos eu e a loucura

e minha cabeça querendo ser arrancada

triste não é bem a palavra

nem possesso

nem devastado

afinal olhem para este rosto

o mais improvável

o que me coube

11.5.08

557

nada como o frio desta manhã

a gente fica olhando o vento

a gente fica exposto ao vento

nem sabe o que vê

já que vento não se vê

que me importa dizer

vejo o vento

o gelo do vento

entrando-me pela carne

como se eu fosse uma pedra

como se parado eu não pensasse em movimento

uma parede ruindo

o mundo caindo

talvez isto seja a tristeza de que tanto falo

para mim sou apenas eu

falando sempre do mesmo jeito da mesma coisa nesta mesma vida

preciso de alguém para odiar

alguém deve ter-me feito isto

alguém não cuidou de mim

por que não imaginei que viver era assim

sou minha prisão

por mais que eu ande

tudo que faço é me encontrar

quanto mais eu me evite

quanto mais tudo me conduza para longe

sou tudo que encontro

10.5.08

556

quanta coisa a fazer

minha mente não alcança nem metade

na verdade não alcança nada

absolutamente

as coisas vão se fazendo por mim

atravessam-me sem que eu nem delas saiba

sei lá

há vezes em que elas nem são tão más

mas são tão maiores

não sei como não me atropelam

ou se atropelam

como não me matam

tudo culpa do massacre urbano

deste crescimento sem fronteira

desta prepotência da razão

a sufocar-nos por prazer

puro capricho

como este animal cresceu dentro de mim

esqueço e não vejo na memória como esquecer

esqueço do que quero lembrar e lembro do que quero esquecer

e parece que não sou o único ser fútil caprichoso e sádico neste universo

só não tenho poder destrutivo suficiente

para satisfazer meu impulso tão humano

9.5.08

555

ver o dia vir

o dia passar

quantas vezes

e depois

da decapitação

viver para quê

se todos se foram

saíram pela porta

pela janela

pelo telhado

ou fui eu que caí num buraco

numa cova

e esqueci de dizer-me que não era defunto

e deixei que eu me jogasse tantas pás de terra sobre mim

mantive a boca fechada

talvez eu estivesse dormindo

decerto

até que enfim algo certo nesta vida

a incerteza

que tudo mais é nublado

o império do meio-termo

eu sem saber se sou eu se sou alguém mais se sou ninguém

apenas com esta irritante vaga sensação de existência

insistindo

contra minha vontade

lutando contra deus

só para que deus seja feliz

e permaneça em seu trono de indiferença e satisfeita solidão

sofrer não é atribuição dele

8.5.08

554

eu só queria o silêncio impossível

a impossível calma

a inimaginável liberdade da mente

que não houvesse mais este deus e este mundo

sempre a nos pisarem

a reafirmarem a cada segundo

que a vida não passa de escravidão

deste inenarrável estender-se muito além de todos os limites razoáveis

deus e sua pesada manopla

deus e sua infinda sede de dor

e de lamento

o que seria do mundo sem deus

quiçá uma bosta menos bosta

não basta tudo de mau por que passamos simplesmente por estarmos aqui

ainda criamos modos infindos de causar mais dor

todos vivemos neste medo

tão normal

tão tranqüilo

tão morno

tudo morto

tudo vivo

que importa ora

ninguém morre inteiramente

nem vive