30.9.07

333

não sou um deus

nunca o serei

aqui já se encravou o hábito de ser inferior

já sou assim por hábito

pela repetição constante de atos

pelas constantes admoestações

convenci-me de que não serei nunca um deus

no máximo um barnabé

como agora

como nunca deixarei de ser

sou uma máquina de carimbar

e certificar

um objeto da mobília

que os deuses decidiram onde pôr

os deuses julgam compram mandam vendem legislam

enquanto eu sou um mero homem-carimbo

certifico que meu cérebro está encolhendo

e que isso não fará diferença nenhuma

certifico que perdi a visão

que não vejo utilidade na vida

que vivo ao sabor da corrente

há muito não sei se eu ainda sou eu

29.9.07

332

estamos aqui no labirinto sem saída nem entrada

falando de absolutamente coisa nenhuma

só falando

falando falando falando falando

como se isso fosse importante

como se a eterna cantilena fosse o que mantivesse a terra girando

como se tudo mais que eu visse sentisse ou desejasse nada fosse se não fosse expresso em enfadonhas palavras

ninguém sabe como o verbo nasceu

mas se ele nasceu antes de tudo

só pode ser filho de incubadeira

o ser mais inclassificável do mundo

a completa singularidade

impossível de decifrar

mas nem por isso menos atormentado

nem por isso menos

após o pó assentar

todos verão

impossível ser mais diminuto

tudo perdido para permanecer assim

tudo ao meu redor

sou meu maior tormento

a mais tortuosa e burra via

que tomei pensando em levar vantagem

28.9.07

331

desejos e vícios

começo e fim

esta prisão e suas grades fedidas

esta prisão

este enforcamento mais lento do universo

tudo vai simplesmente me deixando

menos o desejo a ânsia a gana a voragem

tudo simplesmente escapa-me por entre os dedos

e mesmo depois que os dedos já nem podem segurar mais coisa nenhuma

ainda assim o desejo clama absolutamente em fúria dentro do que presumo ser eu

a sede desta sede

de onde tudo parte

abrindo-me vias na carne

vias dolorosas

vias de uma dor concreta e implausível

da qual parece impossível padecer

mas de que padecemos

pela qual somos consumidos sem economia

quando será que será o momento

nunca

eu vou morrer meu deus eu vou morrer

vou encontrar algo depois daqui

ou vou tão-só inexistir

a única paz duradoura

27.9.07

330

vivo dia a dia

segundo a segundo

simplesmente porque não posso viver tudo de uma vez

não sou dono de mim

mas decido o que acontece comigo

enquanto os deuses vivem a louca vida sem temor

preciso decidir se sou um criminoso ou um trabalhador

preciso escolher se minha morte será rápida ou lenta

preciso planejar o futuro

que não será como imagino

a vida

que acabará quando eu menos esperar

quando eu menos quiser

os deuses simplesmente vivem a louca vida

tão boa e tão louca que muito naturalmente se esquecem dos insetos aqui da terra que lutam agoniados pelo direito de permanecer rastejando

os deuses vivem a louca vida

que só podemos imaginar

supor em pálidas tintas

os deuses loucos vivendo a vida

que deles ninguém é doido de cobrar sanidade

que neles ninguém é doido de apontar defeitos

26.9.07

329

vivo a pedir coisas cuja existência desconheço

vivo a pedir coisas que nem imagino como são

porque as coisas

de nada vale imaginá-las

a imaginação nada constrói

a vida

se dura alguns anos

verifica-se que é um longo e ininterrupto espetáculo de destruição

com um monte de gente morrendo de pavor e fingindo que tudo está normal

a vida é uma decepção dolorosíssima

uma perda permanente

e a persistência de uma fé imbecil e arrogante

sem a qual todos já estaríamos mortos por iniciativa própria

todos já teríamos mandado deus enfiar este mundo e todas suas promessas onde bem entendesse

a vida não passa de um monte de asneiras mesmo

e da fé na fé

que com fé se movem montanhas vá lá

agora só um idiota certificado como o homem

para querer tirar montanhas do lugar

só o homem e sua fé

25.9.07

328

deus é a grande parede branca

diante da qual explodem-me todas as inquietudes

enquanto a parede paredemente parede

nada se move nem para cima nem para baixo nem para os lados nem para frente nem para trás

parede

a parede não está comigo simplesmente porque estou perto dela

a parede é um silêncio

completo

ensurdecedor

nela deposito toda esperança de que findem meus tormentos

e a parede

sequer um peido

e então todos veneramos a parede e execramos nosso semelhante

pois afinal

se o sujeito parece conosco então ele é uma bosta mesmo

voltemos à parede

ela é a coisa mais próxima de um moto-perpétuo que nossa imaginação pode conceber

só faltava se mover

ocorre porém que a parede não veio ao mundo para concretizar nossos sonhos

ela não é um monolito

é só um raio de uma parede

sempre absolutamente sempre no mesmo lugar

24.9.07

327

pergunto-me se quando morremos termina a incerteza

meu palpite é de que não

existir

seja isso o que for

é ser incerto através de fatos incertos

é ir pela vida trombando com o destino

dele tentado fugir desesperadamente

sem notar a idiotice do propósito

talvez um dia acabemos

talvez um dia venhamos a gostar de que as coisas sejam assim

talvez não sejamos infinitamente idiotas

talvez se encontre a paz nesta permanente guerra

talvez se encontre um ponto em que cesse o desejo

ou talvez simplesmente um dia cansemos de dar murro em ponta de faca

e nos conformemos em ser consciências sem poder algum

talvez um dia fiquemos simplesmente como árvores

imóveis fazendo fotossíntese e trocando fluidos com a terra

e entendamos que nada muda

23.9.07

326

acho que eu

como qualquer ser humano

sempre busco meios de não ter paz

sempre quero dar aquele passo além para melhorar as coisas quando elas já estão perfeitas

sempre guiado por uma incontida tendência a destruir o que era para sempre

não fosse minha convicção de ter vindo ao mundo para pô-lo abaixo e erguer outro muito melhor

o que tenho é o poder destrutivo

e o exercito periodicamente com medo de que a falta de prática me faça perdê-lo

mesmo sabendo que isso simplesmente me levará ao encontro da dor

mesmo sabendo que sou como todos que me rodeiam

vivo convicto de que sou diferente

e de que comigo o errado funcionará certo

22.9.07

325

o pior que há é ficar em silêncio

absolutamente parado

dentro de nós há de tudo

menos isso

menos imobilidade

e nossos movimentos exteriores

parecem reflexos do que acontece dentro

na melhor das hipóteses

tudo em apavorante mudança

tudo como ser sem fronteira e sem rumo

obedecendo a uma inteligência desconhecida

a um desconhecimento ininteligível

como se eu soubesse o que é inteligência e conhecimento

e o falatório

gente falando por todo lado

dentro

fora

gente falando e pedindo para gente falar

deixa qualquer um tonto

abobalhado

o que não é problema

basta fazer cara de que tudo está normal

que no fim das contas não há mesmo nada absolutamente nada a ser dito

vivemos articulando sons sabe-se lá por quê

mais uma prova de nossa escravidão

21.9.07

324

acordar com um trovão no ouvido

como se o mundo estivesse todo em minha cabeça e de súbito resolvesse inteiro explodir

de uma vez só

e novamente

a descoberta

de que não canso de sentir terror

sempre da mesma coisa

sou aquele sujeito que vai para diante do espelho

tapa os próprios olhos e fica indagando de si adivinha quem é

e não sabe responder

acho que comecei tudo isto pensando que era brincadeira

agora fico aqui

imóvel

esperando que haja outra vida que me salve desta

na qual trovões não cozinhem meus miolos

em que se possa ser algo mais que um objeto da natureza

em que se tenha algum valor

aqui já perdi todas as brigas

tudo que eu poderia já fugiu de mim

embora eu ainda não o saiba

20.9.07

323

não somos muito diferentes de pavões ostentando plumagens

cada um ostenta o que pode

pau grande cultura inteligência peitões músculos e claro

grana

todos passando diante da platéia em arrastados e majestosos passos

como que conduzidos por um sopro divino

como se a face da terra existisse apenas para expressar a admiração que o planeta sente com nossa presença

na verdade somos pavões arrogantes

com a diferença de que pavões de verdade são belos

sem um pingo de noção de nossa desimportância

certos de sermos senhores de verdades absolutas

e de que o resto do mundo deve abrir alas para a passagem de nossos magníficos seres

somos tão seguros dessa verdade

que a elegemos como a favorita de deus

que nos criou por se sentir cansado de não haver no mundo algo tão lindo quanto ele

19.9.07

322

o problema é não saber para onde se vai após a morte

houvesse certeza de que morrer significa passar a inexistir

eu já de há muito

que maravilha

mas sempre há o risco

de após a morte descobrirmos que continuamos

e que tudo sempre se repete

ad nauseam e muito mais

que existir por um segundo é o mesmo que existir por milênios

antes de tudo é o permanente tormento da consciência de ser perecível

antes de tudo é repetir e repetir e repetir sempre sempre sempre as mesmíssimas coisas iguais

e não ver nada acontecer

18.9.07

321

há dias em que não tenho raiva de nada em especial

e me ponho a escrever sem saber o que dizer

quando não se está com raiva

quando não se sofre

nada há de desagradável no silêncio

pelo contrário

o que irrita é justo a obrigação de falar

justo quando me concilio com o silêncio

justo quando sinto que descobri um jeito de viver sem querer nem fazer nada

exceto ficar em silêncio

exceto viver a vida sentindo-se deliciosamente nulo

mas não

o mundo cutuca

o mundo empurra

e enquanto você não fala não grita não suplica

pára pelo amor de deus pára

o mundo não se dá por satisfeito

e mesmo depois de satisfeito o mundo não esquece de você

o mundo é a máquina criada pelo homem

esta máquina de lavagem cerebral chamada sociedade

17.9.07

320

tudo no mundo é feito de fúria

o mundo todo é pleno de ódio

o produtor de maravilhas

leia-se ser humano

quando não está parindo frutos de sua maravilhosa ciência

como ele próprio modestamente qualifica seus rebentos

quando não está se deleitando com sua fantástica genialidade

lá está o homem

extravasando seu sublime sentimento cego de ódio visceral

lá está o homem

preocupado em tornar a vida do próximo e do distante a mais horrível que se possa

o homem e sua surpreendente capacidade

como ele próprio a define

o homem e seu incrível poder

o homem e sua abismante falta de autocrítica

sempre quem tem voz são muito poucos

e eles falam por todos

e tornam de todos a vontade que é só deles

o homem e sua presença que ocupa tanto espaço

16.9.07

319

o que vale é a força

é submeter

é manter o mundo sob permanente ameaça

encostar todos na parede

e perpetrar inspiradas atrocidades

a vitória sempre é do mais forte

não do mais belo

nem do mais sábio

muito menos do mais talentoso

a menos que seja alguém com talento para destruir

só o amor constrói

vá lá

mas o assunto é destruição

o negócio é o poder de amedrontar

a meta é reduzir o homem a menos do que ele já é

de uma maneira que nem ele mesmo pode supor

tudo feito pelo próprio homem

para o próprio homem

pensando no bem de alguns homens

que afinal de contas essa conversa de deus é assim mesmo

está com deus quem está por cima

o resto ora

o resto é o resto

15.9.07

318

tivessem os prazeres da vida metade da intensidade das dores

esta bosta de mundo seria um paraíso

houvesse uma força que me fizesse inabalavelmente feliz

talvez eu aceitasse chamar essa força de deus

se ele não me pusesse no mundo e me deixasse

o tal do deus sempre escolhe o caminho mais fácil

larga-nos aqui

arranjem-se

fodam-se

deus realmente não dá pelota

deus foi criado à imagem e semelhança da classe empresarial

talvez o negócio de deus também seja dinheiro e sangue

embora eu não faça idéia

até hoje não sei de ninguém que tenha visto a cara de deus

mas não falta quem afirme sua existência

e que o fato de haver vida fora do corpo é prova disso

francamente

não sei o que tem a ver o cu com as calças

14.9.07

317

meu grande problema talvez seja ter esta cara de garçom

e esta índole de dono do mundo

vivo com planos de conquista

e tudo que consigo é ser designado para servir mesas

não consigo dominar nem o mundo das gorjetas

pois estou bem perto de ser o pior dos garçons

não que eu seja o pior

de modo algum

nunca estou em posição de evidência

simplesmente um pouco abaixo da média

ou seja

médio com deslustro

não sei se sou muito mais que uma coisa

sou uma coisa que um dia vai acabar

uma coisa dotada de um espírito capaz de movê-la

uma coisa que não pode ficar só pois senão vive num interminável tormento

mais uma coisa de deus a vagar pelo mundo

13.9.07

316

tudo que fazemos é viver à espera de um justo motivo para liberar nosso impulso sádico

ao menos eu sou assim

tudo que espero

fazer sofrer o mundo

que é todo ou quase todo assim

filho da puta como eu

vez ou outra infligimos dor a quem não se rege pelo mesmo princípio que nós

então descortina-se inteiro diante da gente nosso desvalor

mas não tem problema

basta olhar para o lado

veremos semelhantes aos montões

e poderemos sair por aí leves praticando renovadas torpezas

que é disso que o mundo é feito

é do que vivemos

todos aguardando o descuido do próximo

todos arquitetando novas maneiras de humilhar

isso parece tão normal e aceitável

basta uma justa causa

o deslize que sempre vem

12.9.07

315

abra os olhos

mais um dia

renascer

e era tão melhor a morte

mais um

decerto um daqueles

outro

diferente apenas no que não releva

outra oportunidade de descobrir fraquezas e ganâncias

outra oportunidade de ser humano na pior acepção do termo

se é que já houve alguma boa

mais um dia

alegria

estamos entre amigos

que ninguém fique no meio do salão porém

sempre pode haver fogo cruzado

conversas furtivas olhares de esguelha desejos frustrados inconfessáveis e a criatura que mora dentro de todos nós e que a qualquer ruído pode ser despertada

dizem que é deus dizem que é diabo dizem que é sanguinolenta

11.9.07

314

se avançamos num caminho

avançamos no futuro

mas se voltarmos pelo mesmo caminho

não retornaremos no passado

tudo segue num único sentido

e nunca pára

tudo vai para o mesmo lugar

todos os caminhos levam à roma dos pés juntos

ao pó

e então me vem o mané com a conversa da escolha

que devemos escolher

que devemos assumir o comando de nossas vidas

porque no mundo as coisas são assim

se você não faz outro vem e faz em seu lugar

mundo bunda

mundo feio

mundo chato

nossa finalidade neste inferno é amealhar valores econômicos e causar sofrimento aos outros

contanto que isso se faça nada mais vem ao caso

o tempo todo procurando o ridículo no próximo

o tempo todo atrás de um motivo para desqualificar meu semelhante

tudo caminha num único sentido

mundo bunda

10.9.07

313

tudo na mesma

governavam os idiotas de direita

agora são os de esquerda

o que me leva à conclusão

de que a cor pode mudar

mas o cheiro é sempre de merda

no fim das contas o sistema é um grande serviçal dos abonados

tudo funciona para o bem deles

cumprindo-se isso

no mais faz-se o que se pode

fodam-se todos

de preferência sem prazer

no mínimo em silêncio

a casa da mãe joana também precisa de criadagem

e cabe à ralé compreender que a farra não pode ser para todos

sacrifícios são necessários

porém não de todos

de quase todos somente

o sofrimento alheio é perfeitamente tolerável

9.9.07

312

a vida vai se fazendo nó a nó

embaraçando-se um a um

conduzindo-nos para longe da entrada e da saída

tudo conspira de modo a manter-nos no mesmo lugar

já me convenci de minha desimportância

e não posso descrever o pavor de que me vi tomado ao percebê-la

a vida não parou para eu me ajustar à verdade

estou correndo atrás de mim

e me vejo cada vez mais distante

tudo na vida são espelhos

em que vejo minha falta de cara

8.9.07

311

tudo nem bom nem mau

coisas assim

sem rosto sem traços

não fazem a vida nem melhor nem pior

só vida

pela qual luto

presumo que mais por impulso químico

afinal olhem-me bem

ignorante

sem lugar

vivendo

dizem que vivendo

sem nem saber se vivo

sabendo que vou morrer

sem nem saber se vivo

só me esquivando do que dizem ser perigo

como todos que me circundam

que o único companheiro de todas as horas é o peso da existência

que inclusive deus às vezes dá uma folga

larga do meu pescoço e me deixa tomar um fôlego

curtinho

pois ele administra todo sofrimento

de modo que nos seja impossível ver-nos livres de sua onipresença

de modo que nunca aprendamos a deixar de sofrer

7.9.07

310

o que tenho tido ultimamente é bom

mas não é a felicidade

caso seja

que decepção

não atribuo culpas

é só o fato

o medo nos leva à apatia

e no fim das contas já não distinguimos entre prazer e dor

por falta de uso

vive-se

se é que se vive

num quarto estado

sem sofrimento nem deleite

e sem ser além de tudo isto

talvez seja como viver emparedado

enquanto forças estranhas conduzem nossos gestos

só nos chama a atenção fato que ameace destruir nossa cela

que ao mesmo tempo é nossa fortaleza

tudo mais é aquele montão de coisas desconhecidas

que não sei como tratar

que nem percebo

no exato momento em que agem

se me fazem bem ou mal

se me fazem bom ou mau

em resumo não tenho a mínima idéia de porra nenhuma

6.9.07

309

não sei como pode haver vontade no meio de toda esta ignorância

não sei como se pode dizer que somos livres

se tudo que sentimos é medo

não há como ter paz quando não se é um universo

quando dentro de nós não há a fonte que sacia todas as carências

sinto-me miserável

miserável e ofuscado

pelo brilho das mentiras

sou como sou

não adianta querer ser diferente

bem como não adianta querer me forçar a gostar de mim

simplesmente não tenho controle sobre este estranho que usa meu nome e meu corpo

prisioneiro sou

antes de tudo de minha covardia

de minha valentia

e das palavras que rolam de um lado para outro dentro desta cabeça

que tem tanto espaço ocioso

tantos fluxos turvos

e esta ânsia

ou sua ausência

5.9.07

308

se não tenho um ponto fixo de referência

então não há por que lutar

nada permanece

não há condição que me indique para onde ir

só estes tortuosos interiores

estes vasos não comunicantes

entre os quais transito depredando paredes

quando as paredes não me depredam

4.9.07

307

muitas vezes a sinceridade está acima de nossa vontade

mostramos quem somos ou o que somos por mais que nos escondamos

e até por isso

a verdade grita dentro de nós

por mais que façamos que o mundo deu voltas

nós somos aquela imagem no espelho a torturar-nos o dia inteiro

aquelas pulsões

3.9.07

306

o amor não me tira deste estupor

o ódio não me tira deste estupor

não sei se há um segredo para o bem-estar

não sei nem se há bem-estar

ou se o que há é gente fingindo estar bem

enquanto os demais são simplesmente sinceros

e expressam sua falta de expressão

com seu modo de ser inexpressivo

eis tudo que conheço

eis tudo que o mundo parece ser

um monte de coisas maravilhosas que nunca experimentarei

pois deus está solto por aí

matando gente adoidado

que é para isso mesmo que ele nos faz nascer

somos seus brinquedinhos

objetos de sua sádica sede de maldade

deus está solto por aí

e tudo que podemos fazer é orar fervorosamente a deus

suplicando-lhe que não nos faça suas vítimas

deus enquanto isso talvez ria

talvez solte um pum

2.9.07

305

a solução de todos os problemas dos meios de comunicação

é ter sempre à mão uma criança e um poço

a fim de que nunca faltem notícias

resgata-se o pirralho vivo ou morto

segundo a necessidade do momento

conforme a ralé necessite de esperança

ou de terror

a realidade vive na tela do televisor

tudo mais é um mundo suspeito e incompreensível

que somente nossos ignorantes olhos não poderão jamais desvendar

a ganância assenta em bases muito profundas

as razões das desgraças são grandes benefícios

pelos quais vale sacrificar tantas vidas quantas se requeiram

desde que sejam as vidas dos que não foram pensados para se beneficiar do massacre

entalem o moleque no poço e dêem início à transmissão

que os patrocinadores não abrem a carteira por besteirinha de somenos

1.9.07

304

a gente anda anda anda sobe desce dá de cara na parede se revira para tudo que é lado

nada

apenas descobrimos que como miniaturas do mundo somos um labirinto sem graça

um monte de caminhos entrecruzados que não levam a nada absolutamente nada mesmo de interessante

somos verdadeiramente entediantes

muito menos interessantes que qualquer eletrodoméstico

uma máquina de lavar tem mais alma que uma grosa de bicho homem

qualquer outro animal é mais interessante que esta criatura divina

aliás é melhor dizer que poucas muito poucas coisas na verdade são mais sem graça que um ser humano

será que ninguém nunca pôde supor que talvez apenas talvez os outros bichos não busquem ser tão geniais quanto nós apenas por já saberem quão sem graça isto pode ser