31.3.07

150

este mundo é uma grande loja

onde a grande maioria dos freqüentadores não pode comprar quase nada

mal conseguem o bastante para sobreviver

e se divertem olhando em vitrines a abastança alheia

este mundo é a descoberta de que os sonhos são muito maiores e mais divertidos que a vida

e de que não vivemos nos sonhos

mas num mundo em que ossos e fortunas se quebram

onde tudo que está mal termina mal e tudo que está bem termina mal também

quem sabe felizes sejam os natimortos

ao menos desta prisão eles se livraram

quem sabe onde se está a salvo da infelicidade

e do permanente desgosto de se ver o que se é

de nunca poder se ver livre de si próprio

e do torpor da noite mal dormida

viver é lento conflituoso e cansativo

como uma longa espera por algo que não se quer

um ônibus lotado

um exame de próstata

uma morte às cegas

como sói a morte

30.3.07

149

cedíssimo estar de pé

quase não dormir

viver em constante atividade

isso é quase tão enfadonho quanto o tédio do ócio

a diferença é que em atividade vivemos meio que alucinados

sem ver muito do que se passa

de modo distinto vamos a nada

os desejos permanecem pedras insolúveis

em que tropeço para voltar a tropeçar

a vida é uma coisa repetitiva ao extremo

que se converte em vício

em segurança

vivemos para obter um pouco mais de vida

mesmo quando tudo em volta nos sugere que um suicídio básico

tudo está uma merda

não vem ao caso

ou vem

sofremos para ver se deixamos de sofrer sofrendo

é problema de cada um saber o que lhe faz bem

29.3.07

148

não sei o que espero

só sei que é direta e proporcional a relação entre desejo e sofrimento

deseje-se ou não

é a busca incessante

é dizer que só mais um pouquinho

a vida é um vício

é vir ao mundo para muito ver e pouquíssimo ter

saber e não usar

dizer e não ser ouvido

enfia a viola no saco

vá catar coquinho

que de mágoa o mundo já está pela tampa

28.3.07

147

sei lá se deus é vingativo

nem se ele me odeia

provável que eu só lhe seja indiferente

tenho mais que fazer

dirá deus indo à praia ou à montanha

para tomar banho de sol

comer e beber do bom e do melhor cercado de lindas mulheres

talvez seja assim

enquanto aqui nos desmanchamos em súplicas

enquanto rastejamos

o todo-todo

do meio do tédio de sua enfadonha pletora de conforto e prazer

deixa cair migalhas sobre nós

de sofrimento e de alegria

e reza ao altíssimo

ou seja a ele próprio

que lhe conceda livrar-se dessa gentinha irritante e choramingona

que ele nem faz idéia de quem seja

se dissermos que somos seus filhos

ele exigirá a confirmação em juízo por decisão transitada em julgado em processo instruído com prova pericial fornecida mediante exame de adn das partes

em pelo menos um ponto dessa história eu fecho com deus

nós somos um saco

27.3.07

146

querer tanto falar e nada ter para dizer

tão humano

se o homem um dia se olhasse com olhos alheios

acho que teria uma caganeira súbita de tamanha vergonha

dizemos que nada além de nós pode alcançar a idéia de dignidade

no entanto quão mais digna a maneira de viver dos outros seres

sem draminhas de consciência que sempre deságuam em conflitos truculentos

os outros animais matam e morrem com elegância

jogam conforme as regras

enquanto o homem

minha nossa

que vergonha de ser humano

a trapaça há muito é a essência de nossa ética

desde sempre

e só nós cultuamos de modo tão ferrenho o sublime

os bichos simplesmente se alimentam brincam copulam lutam dormem

enquanto ficamos por aí

cultivando nossas faculdades superiores e cagando no universo

26.3.07

145

não faço nada

acordo cedo para isto

deito tarde

nada no mundo mudou

eu podia ter ficado na tumba alimentando os vermes

teria vivido mais

talvez o problema seja este excesso de sofrimento

tudo me tira de mim

até uma unha encravada

qualquer coisa serve de pretexto para este chove-não-molha

provavelmente eu seja assim

tergiversador

por medo

decerto

medo que de tanto ser repisado virou tédio

como toda ameaça que muito se repete e nunca se concretiza

sei que há perigo

só não sei como ele é nem onde esteja

sei que serei sua vítima

sei que nada pode evitá-lo

então vivo sem olhar muito para os fatos

o mais distante que posso

evito envolver-me muito com a vida e com as virtudes

amanhã a monstruosa mão divina porá tudo abaixo

25.3.07

144

a felicidade é impossível

tal qual a satisfação e o fim de um desejo

busco o que nem sei como é

volta e meia me digo

estou dormindo e este pesadelo vai acabar

na verdade não sei

tudo brota desta ignorância

e este processo de criação de conhecimento a partir de conhecimento nenhum

deixa-me com a mesma sensação que uma refeição farta e gordurosa regada com muita cerveja

a gente sai da mesa como se tivesse um tanque de lama no ventre

tem uma digestão longa e acidentada

chega-se a fazer promessa de que se vai regenerar

quando o cataclismo passa e sobrevivemos

eis as mesmas bestas de sempre

rindo da própria desgraça

24.3.07

143

cedo ou tarde

tudo é uma questão de tempo

cedo ou tarde tudo acaba

o bem-estar tem uma estranha tendência para acabar cedo

já o mal-estar

tarde

bem tarde

cada milionésimo de segundo é uma gota

lenta

como a torneira vazando na madrugada

ficamos antecipando o que nunca

até que o nunca se torna fato

mas tudo passa

até a gota deixa seu lugar para que ali se forme outra

já o bem-estar

como um prego na piscina

antes que o joguemos

já chegou ao fundo

23.3.07

142

se tudo está muito bom

então vai piorar

e não adianta se agarrar ao bem-estar com unhas e dentes

a porra do destino sempre nos arranca do lugar

e nos joga onde bem queira

se tudo estivesse tão bom assim não haveria este medo pânico

tudo na vida passa

esta calma vai passar

meu inferno está todo aqui em repouso

vivo e aberto

é uma questão de tempo

aquelas garras cuidarão de prender-me cariciosamente

meu mundo de horrores é onde quer que eu esteja

sempre substituindo um erro por outro

quando impossível cumulá-los

22.3.07

141

nada mudou

salvo a ilusão de que há mudanças

de resto as coisas só não estão mais iguais porque não podem

os poderosos querem que nos envergonhemos dos empregos que eles nos impingem

a televisão dá notícias do mundo que ela quer ver

o terceiro reinado neoliberal prossegue na árdua tarefa de promover a concentração da riqueza

até quando este país só vai servir de parquinho de diversão dos cagadores de regras

até quando pensaremos que dignidade é uma questão de custo-benefício

até quando terei que engolir tanta raiva

não há esperança que resista nesta terra

não há orgulho que se sobreponha ao sôfrego anseio da macacada de se ver reconhecida como igual pela gringada rica

povo idiota

será que já não deu para notar que o prazer de quem está em cima é cagar em quem está embaixo

adolescentes fazendo cara de mau e pronunciando siglas em inglês

puta merda que saco

não bastavam políticos e miséria

também tinha que haver a emtivi

21.3.07

140

não sei se pensamos em algo antes de vir ao mundo

se temos idéia do que está em andamento ou de para onde vamos

nem mesmo sei se existimos antes de estar aqui

o que sei é o que sinto

e não sei o que sinto

se meu sentimento é este aperto na boca do estômago

se esta sensação é a expressão física de meu sentimento de mundo

então o que sinto é que estou na iminência de um gigantesco desastre faz mais de quarenta anos

de uma desgraça incalculável

a vida é um campo minado

aguardando nosso passo fatal

e enquanto ele não é dado vou agradecendo aos céus por não ser a criatura mais fudida do universo

vou vivendo feliz a finitude de tudo

essa infinita maldição

a natureza das coisas

é tão diversa do que nelas quero ver

covardemente me calo

dizendo-me que tudo vai mudar

como se de mim dependesse algo

20.3.07

139

mais um dia para fingir

mais um dia na rua

repetindo para mim

não devo matar ninguém não devo matar ninguém não devo matar ninguém

e dizendo bom dia boa tarde como vai

dando vez no elevador e segurando a porta para as mulheres

mais um dia

mais um diazinho

um mísero dia a menos

no máximo viverei oitenta anos

vá saber até quando terei alguma lucidez

uma hora isto acaba

espero

uma hora alguma coisa tem que mudar

e que não seja esta convicção de que algo tem que mudar

quem sabe um dia eu acorde e encontre a porta da jaula aberta

e possa sair e olhar o mundo

e não me sinta mais forçado a amar nada

e não me sinta mais condenado a conviver com meus semelhantes

nem a buscar a porra da salvação

quem sabe um dia eu consiga ser estúpido como um animal e possa ver o mundo como uma experiência sempre nova

diversamente do que me impõe esta condição superior

19.3.07

138

por mais que a vida fosse bela

o trabalho a tornaria um inferno

existem coisas piores que trabalho

mas dos fatos corriqueiros da vida

trabalho é de longe o pior

vim ao mundo para passar por isto

como tantos outros bilhões de manés

somos sobras

não fazemos diferença alguma

sem paz e sem dinheiro

na infinita fila

busco a todo custo matar esta sensação de que tudo vai dar certo

sei que não vai

18.3.07

137

como doem os desejos

como cansam as pretensões

como pesa esta individualidade

não sei se existo ou se sou só um espelho

sei que sou mais um dos incontáveis nesta fila infinita

esperando sei lá o quê

esperando que a espera acabe

esperando que o castigo de existir não dure para sempre

e no intermédio buscando felicidades finitas

migalhas que sustentem a ilusão de existir um deus que só jogue a meu favor

e que me afastem desta diminuta busca por qualquer migalha de tempo

no mais a vida é como ser posto diante de uma parede branca

e ter que permanecer parado com os olhos fixos nela

toda vez que se tenta mudar de posição ou olhar para outro lado

leva-se uma sonora chibatada

tem-se um membro mutilado

perde-se algo de que se gosta

ou alguém

tudo deve se resumir à parede branca

à parede branca

à parede branca

à parede branca

e a você

sempre diante dela

sempre diante dela

sempre diante dela

sempre diante dela

17.3.07

136

as árvores devem morrer de tédio

sempre o mesmo lugar

expostas

sem poder fugir

sem guarda-chuva

sem televisor

as árvores devem morrer de tédio

sem relações sexuais

inseminadas por pássaros ventos cagadas

assistem imóveis à ação em redor

sem protestar

se as cortam se as regam

as árvores devem morrer de tédio

porque são mudas imóveis e vivas

porque são queridas por serem úteis ou belas

jamais por serem simplesmente amadas

as árvores devem morrer de tédio

por saberem que de nada vale sua individualidade

por saberem que seu único valor é o de mercado

por saberem que são plantadas para serem cortadas e de seus cadáveres se fazerem utilidades

as árvores devem morrer de tédio

por saber que nada vale a vida interior

16.3.07

135

não importa com quem eu durma

sempre acordarei comigo

quem comigo acordar

acordará só

vítima de mim

faço aos outros as maldades que me acho digno de sofrer

das quais me poupo por simples covardia

odeio o mundo sem restrições

quanto a mim porém

odeio-me na medida do possível

me borro de medo da dor

mas a dor alheia não é minha

o mundo não é meu

a vida não é minha

vivo a termo final incerto e inteiramente potestativo

sabe lá até quando posso brincar

na dúvida brinco com mau gosto

procuro doer no próximo e no distante

como a iminência da morte

e o desespero do labirinto

15.3.07

134

o saber em nada muda o sofrer

ao menos não o elimina

o teclado dos sentimentos é enorme

repleto de múltiplas funções

e a cada milésimo de segundo sou obrigado a apertar um botão

conhecendo ou não o que disso resultará

sabendo ou não sobre quem recairão as conseqüências

a vida é esta história

algo roleta russa

este painel de descontrole

esta ameaça que devo mover contra mim

sem saber até quando meus erros me tolerarão

o medo

conforme o caso

aumenta ou diminui

nunca se vai

e toda noite durmo como quem aguarda a execução na manhã seguinte

a decisão cabe a meu proprietário

ou a ninguém

se sou o senhor de mim

melhor fosse ninguém

pior ainda se fosse deus

antes ser esquecido

apartado da criação

nada se perderia

14.3.07

133

vivo com tremendo esforço

toda disposição tem que ser tirada lá do fundo de mim

pesada escoriada ameaçadora

tudo tão lento

este corpo pesa tanto

esta mente

viver é de uma morosidade vertiginosa

é mais ver coisas não acontecerem que acontecerem

e esperar a sensação final da lâmina no pescoço

macio como manteiga

amanhecer com o terror da expectativa

dormir

e ter que pensar no bem-estar

conceber novas formas de tornar o mundo infeliz

às vezes até praticar um homicídio para preservar o equilíbrio das coisas

e dormir e acordar e dormir e acordar e acordar e acordar e acordar

viver desperto sem consciência

sentindo este cansaço sem causa

chorar sem razão

odiar sem razão

amar sem porquê

perdoar a quem nada nos fez

destruir o prazer

com consciência do dever cumprido

13.3.07

132

a estrada escura

esburacada

está aberta a quem nela deseje se arrebentar

é por conta do freguês

não se queixe do que não pode mudar

não esqueça

você é o que não quer

e o barulho que fazem todas as reclamações

é só barulho

dispensam-se palavras

a música é velha

nem por isso menos válida

porém decerto ineficaz

porque dirigida às paredes

e paredes

se ouvem

somente ouvem

nelas ficam os apelos

emparedados

qual paredes estamos pelo mundo

tudo em redor são paredes mudas

você

parede de si

outra delas

parede a dormir

separando recintos

à força de marreta paredes são desmanchadas

e todavia não se encontram

as mensagens caladas

que só podem persistir nos fragmentos indevassáveis da demolição

onde será que fica todo esse nada que tanto nos custa construir

12.3.07

131

estamos no mundo de passagem

se é que estamos

se é que passamos

se é que não somos passados

se é que não somos passado

algo aconteceu

algo

o que aconteceu mané

sei não

não faço idéia

de qualquer maneira

melhor pensar que algo se deu

que viver na certeza de que tudo sempre foi assim

eterno devir que não vem

certas vezes cogito que não vivo

sou a besta padrão

nenhum pensamento me faz esclarecido

meu ou alheio

o que vou ensinar para meus pósteros

que sou oco

de tudo se aprende

até a estupidez presta-se a instruir

outros tiram lições desta anta oca

e a anta oca permanece

e nem sequer reconhecer o brilho de sua falta de substância

que muito oco há de bem mais interesse

a anta só não quer viver à míngua

ela se atopeta de comida

fartam-se-lhe as banhas

nem por isso

ainda anta

uma complicada teia de fatuidades

11.3.07

130

e se o vento soprar a meu favor

será isso mostra da simpatia de deus

francamente

não me creio nada apto a identificar a fonte oculta de meus benefícios

venha de onde vier

contanto que me poupe

mesmo que por milésimos de segundo

qualquer esmola me serve

vivo na mendicância

e qualquer dor menos doída provavelmente a encararei como o paraíso

a bem dizer não passo de um rotundo estômago

em busca da saciedade ininterrupta

embora eu fique aqui

crente de que engano a morte com especulações sobre minha duvidosa espiritualidade

se ao menos eu fosse um estômago honesto e sincero

como os bichos

eu seria um estômago em paz

presumo

um estômago sem culpa

sem úlcera

sem suposições

mas teimo em teimar que a sede do sublime encontra-se no cérebro

e do estômago que sou faço gato e sapato

a fim de que ele se conforme à ditadura do cabeção

não passo de um mendigo enfatuado

10.3.07

129

estou a um passo do abate

e vivo como se fosse o dono do matadouro

deve ser efeito da lavagem cerebral chamada educação

fruto do modo humano de encarar o mundo

ou então é assim porque é assim mesmo

chegar ao fim não se coaduna com permanecer no meio

creio

como seja

a impressão que tenho é de que algo não se encaixa bem nesta história

e de que estou a um passo mínimo de quebrar feio a cara

outra vez

por que haveria eu de confiar em mim

ou no meu semelhante

ou no tal do deus

que pode não ser pagão mas é caprichoso como um zeus

ter que viver pedindo bênção e proteção a esse coronel do além

simulando um comportamento que não é o meu

tudo que quero é ser o princípio supremo absoluto

do contrário nada sou

a não ser passageiro nesta rota suicida

orientada sabe lá por que caprichos

sempre achando que a parede está muito perto

e a velocidade muito alta

9.3.07

128

tudo sempre vai ser assim

pronto

tenho dito

esperneie grite xingue

nada muda

no máximo no futuro dirão

ele esperneou gritou xingou e nada absolutamente nada mudou

você está só no universo

você é só e está no universo

talvez um dia você vá para outro lugar

e então lá você estará

como aqui está

a individualidade é uma prisão

a prisão e o prisioneiro

e deus lá

pendurado no teto dizendo

ame seu filho da puta

senão eu fodo ainda mais com a sua vida

e aonde quer que se vá

lá está ele

brincando de soldadinho conosco

mutilando uns

premiando outros

fazendo heróis e vilões

e nós aqui

mortos de medo

prisioneiros do livre arbítrio

podendo livremente escolher se queremos mais ou menos sofrimento

a liberdade é uma cela um pouco mais espaçosa

onde a pena é mais suave por sabermos que há penas piores

deve ser divertido pra caralho ser deus

8.3.07

127

se ao menos eu não precisasse sair de casa

e pudesse morar longe das pessoas

perto dos bichos

se ao menos eu não ligasse a tevê

que me lembra a cada instante quão imbecil devo ser

se ao menos eu aceitasse abandonar este vício chamado vida

mas para lá é uma escuridão desconhecida

enquanto nas trevas de cá ao menos faço uma idéia do que pode acontecer

mais prazer para quem tem prazer demais

mais dor para quem tem prazer de menos

e um dia

de qualquer forma

ser expulso deste manicômio

e quem sabe cair num outro mundo parecido com este daqui

chato e contrariante

porém cognoscível

ainda que nunca compreensível

e dizer para si

não tem jeito

este troço nunca muda

e buscar uma droga qualquer que permita coabitar em paz com a frustração

quem sabe momentaneamente tornar-se alguém especial

e cagar e mijar na cabeça dos semelhantes

aproveitando o fugaz instante de glória antes de tornar à vala

7.3.07

126

ei-lo mais uma vez

o desespero frouxo

o esconder-me atrás de minhas mãos

a formalidade de praxe

para que não digam

vejam ele não se preocupa com nada

e tudo que quero é ter prazer

nunca achei a mínima graça em honestidade decência bondade e trabalho duro

sou como a maioria

tenho as ambições de todos que quase todos recusamos confessar

quero ócio

infinito ócio

e conforto

conforto em demasia

o único próximo com que admito me preocupar é o dinheiro

que tem primado em se manter distante

não penso nem um pouco em olhar para o meu interior

este quarto escuro de que brotam todas as contrariedades

de onde nada há nada vem

e se há algo que a luta me ensinou é que lutar é um saco

é desgastante e infrutífero

e não faz diferença alguma

a vida segue

enfadonha

e só o medo de que a morte seja ainda pior

é que me mantém aqui

resmungando

6.3.07

125

cada dia é um inferno

comigo

não posso estar em pior companhia

quero nada fazer

encosto num canto para esperar o dia em que deixarei de ser eu

e há vozes

aquelas

dizendo tantas palavras ao mesmo tempo

vivo sem sono

apenas com uma premência desesperada de fechar olhos ouvidos boca nariz e deixar

aqui dentro ainda mora a estúpida esperança de viver sem correntes

de encontrar um mundo sem dor

absolutamente sem dor

mesmo que ser sem dor seja não ser

mesmo que viver sem envelhecer seja não ser

toma deus

enfia no cu esse seu amor de bosta

toma natureza

seja feliz com sua beleza

apenas me deixem

sei que não tenho relevância alguma

e isso me dói

mas já cansei de querer ser ouvido

já cansei de querer ser

5.3.07

124

quem disse que seria fácil viver

quem disse que seria fácil escolher

quem disse que as escolhas fariam diferença

quem disse que a escolha cabe a mim

quem disse que estou crescendo

quem disse que só me torno melhor

quem disse que estou a salvo

quem disse que sou filho de algum deus

quem disse que dinheiro é o de menos

e que só o amor constrói

quem disse que o que conta é a beleza interior

quem disse que o importante é de noite poder dormir em paz

quem disse que se dorme em paz

quem disse que há felicidade

quem disse que há tristeza

quem disse que há eternidade

quem disse que a vida vale a pena

quem disse que existe o bem

quem disse que se deve acreditar no que os outros dizem

quem disse que se deve acreditar no que se diz

quem disse que devemos acreditar no que vemos com os olhos ou sem eles

quem disse que há pecado

quem disse que é bom ter esperança

quem disse que é bom viver por um fio

quem disse que existe um deus

quem disse que tudo um dia acaba

quem disse que é obrigatório viver

4.3.07

123

toda manhã nego a noite

esqueço e contrario o que pensei ao deitar

deixo para trás o que queria levar adiante

e avanço no dia deixando para trás pequenos pedaços da convicção que me despertou

chego ao meio da tarde sem noção de mim

no anoitecer sinto que me traí

deito na cama e não durmo por não saber por que foram meus esforços

sou pego de surpresa pelos sonhos

de que saio pela manhã abismado

órfão

como nascido agora num mundo em que tudo é real na pior acepção da palavra

onde coisas não têm retorno

onde o que se quebra fica quebrado para sempre

e no transcurso do dia vou tentado engolir este inferno

aprendendo pela infinitésima vez que só se atravessa a rua com sinal verde

mas daí vem a noite

e o sono difícil

e o delicioso esquecimento

3.3.07

122

para que perceber que não sou único

e que tudo que me acontece já aconteceu acontece ou acontecerá com inúmeros outros

para que saber que a morte é um fenômeno geral

e a partir do que vejo conceber meu provável futuro

que vantagem há em ser assim

e não como outros

que parecem não ter nem querer ter idéia do que pode ser

enquanto os homens

humanamente

criam conceitos e conceitos sobre o que se passa fora de si

e passam a crer que dentro de si nada há

que tudo já se encontra coletivamente estabelecido

e depois passam a vida em busca da individualidade perdida