31.8.08

669

detesto essa gente que em vez de contar uma história

perde-se em milhares de citações

textuais ou contextuais

não estou interessado nos tais dos clássicos

não acho os tais dos clássicos essenciais

não creio que conhecê-los contribua para fazer o homem melhor

cada vez acredito menos no conhecimento como meio do bem

o conhecimento só é essencial quando se precisa viver na defensiva

é mais um desses enfadonhos artifícios preventivos

que devemos ter à mão para sobreviver neste enfadonho mundo repleto de enfadonhas ameaças

não creio que os clássicos sejam maus apenas por serem clássicos

mas dentre eles vários há que são chatíssimos

como shakespeare josé de alencar e de modo geral tudo que seja épico

essas coisas com muita palavra e pouco clima

e quando leio uma história quero uma história

não um roteiro das maravilhas humanas que devo conhecer

30.8.08

668

a vida sempre nos reserva surpresas

um fato desagradável já basta para tornar tudo horrível

sempre há um pé para pisar-nos a cauda

e deixar-nos dando passos em falso

certos de andarmos quilômetros

de estarmos distantes no momento em que tudo venha abaixo

incapazes de perceber que o que vem abaixo somos nós

o que se rebaixa e se humilha

não é ninguém além de nós mesmos

nossa como é mau existir

e ter que contar com a piedade da porra do bom deus

tudo na existência é desconforto e medo

o prazer não tem nem um milésimo do tamanho da dor

e é a dor que se lembra de mim em meus momentos solitários

nossa como quero o fim desta existência

e que tudo se mantenha como sempre

como aqueles caminhos feitos pelas formigas

uma atrás da outra

e num dado instante tudo se foi

29.8.08

667

como se fala e se discute e se idealiza o que não se vive no exato momento em que se vive

nunca fomos tão diferentes do que somos agora

ao menos em nosso íntimo

e a esmagadora maioria das coisas que vivemos

é absolutamente sem significado

simplesmente se fazem porque o corpo as requer

ou porque sei lá

por ser assim mesmo

mas deixe o tempo passar

talvez logo depois de amanhã o modo como você segurou a xícara hoje ao tomar seu habitual café torne-se um fato entupido de significados

e traga-lhe uma saudade loucamente arrebatadora dentro de uns poucos meses

no momento em que do mesmo jeito de sempre

na mesma hora

você tomar seu café

a imensa a quase total maior parte do que acontece na vida é assim

repete-se o que não se sente

28.8.08

666

a vontade de viver é bem pouca por vezes

o desejo de sair e conhecer o mundo e seus seres

francamente

não há experiência única na vida

depois que se nasce

tudo tão rápido torna-se conhecido

e o desconhecido nunca deixará de ser

ponto

o tempo só nos leva a aceitar este destino

ou a nos colocarmos contra ele

eis a vida

sem segredo e sem sabor

se ainda houvesse quem me quisesse ouvir

não tenho a mínima pretensão de ser vidente

mas às vezes vislumbro meu futuro

e tremo

velho anônimo doente falando com as paredes

pedindo para a vida acabar sem dor

e rápido

viver é uma experiência cruel

que talvez nem marque tanto quanto parece

ainda assim é muito difícil viver a tal da vida

viver é para poucos

morrer é para todos

27.8.08

665

nada tenho a dizer

nunca tive nada a dizer para ninguém a respeito de nada absolutamente nada

e como falo

minha nossa falo pelos cotovelos pelos joelhos pelos calcanhares

escrevo lamentos e resmungos

discurso com autoridade sobre coisas de que nunca ouvi coisa alguma

e não poucas vezes sinto o medo de que descubram

fico pensando se já notaram que vendo um produto em que não acredito

por quanto tempo ainda

pois posso me sentir tudo nesta vida

menos autêntico

e se me perguntarem a respeito do tal do verdadeiro eu

tudo que posso dizer é que eu nem sabia que eu era eu

não sou eu que sei de mim

sou só um veículo

que existe porque existe

não me conduzo

26.8.08

664

talvez não haja surpresa neste mundo

evidente que tudo que há pode ser só tudo que vemos

nada mais

insistimos em que nos seja mostrado apenas e tão somente o que queremos ver

o mesmo se diga do conhecimento

só admitimos conhecer o que não contrarie nossa crença

e cremos que não somos hipócritas

nunca vi bicho chato e mentiroso como o homem

criatura irritante

pavão depenado a desfilar pela vida

crente de estar cheio de plumas e de cores

que chato ser assim

a salvação talvez esteja por acontecer

talvez o mundo se salve de nós

talvez acabemos antes de acabarmos com o planeta

talvez

suposições não pagam nada

25.8.08

663

espero tanto da vida

e sei que não me chegará nem metade

também suspeito

que o que chegar não será tão bom quanto espero

sempre aquilo

toda vez que desperto desejo voltar ao sono

e nada me apaga o bastante

nada me põe fora de mim o bastante

a ponto de me tornar outro

de me levar para fora

há os hormônios

a ditar imperativos

e o medo

que a falta e o excesso de atividade glandular causam

transformo tudo em comida em bebida em fumo em sexo em direção perigosa e também em um pouco de trabalho

mais nada

ou algo mais que simplesmente não conta

que me tomaria milênios para explicar

24.8.08

662

não há satisfação para a alma

nada que silencie

é todo tempo jogado para todo lado

ter todo tipo de sentimento e não ter nada

sentir cá dentro este âmago frio apático

como se todo o turbilhão nascesse de uma urna funerária

respeitem o defunto

estar aqui é um sutil castigo

viver em tormento nesta paz de cemitério

ter que empurrar este fardo através do tempo

buscando neste repertório tão estreito gesto que não resulte em tirar mais terra do buraco

mas tudo conduz a um só caminho

não há sorte que nos livre de deus

não há saída

a vida é absoluta

deus pode nos dar tudo

ele só não dá liberdade

meu saco já está cheio de seu amor

e de sua escrita certa por linhas tortas

estou de saco cheio do criador

e de suas criaturas

23.8.08

661

pois é

eis-nos aqui sob o peso da existência

felizes porque comemos bebemos dormimos e preservamos razoavelmente nossas funções corporais

ou infelizes porque não

somos fracos

bastante vulneráveis

e sentimos uma imensa ameaça sempre em derredor

sempre conosco

sempre dentro

sempre fora

e recorremos cada vez mais a nossos poderes

a nossas prerrogativas de favoritos do criador

e como o cão correndo atrás da própria cauda

perseguimos o mal que nos ronda

afinal a salvação foi feita para nós

e a queremos rápido

enquanto ela não vem perdemo-nos em contemplações

maravilhas que somos

22.8.08

660

por todo lado vejo crianças

futuros adultos

a maior parte a imensa maior parte futuras nulidades

a segunda maior parte

muitíssimo menor que a primeira

futuros crápulas tiranos gananciosos e letais

e talvez quem sabe porventura um

um dentre todos

que não venha a ser covarde mesquinho pequeno estreito cruel daninho pérfido letal doentio

a esperança é a última

todos dizemos

bem provável que o mundo inteiro morra antes desta maldita esperança

que nos faz entupir o mundo de criaturas como nós

fundados na crença de que assim tudo se salvará

21.8.08

659

novo dia

como se algum dia nascesse velho

velho sou eu

e minha conversa

velho é tudo dentro de mim

velho é fazer a mesmíssima coisa todo novo dia

o dia sempre passa do mesmo jeito

e sempre diferente

e se mudo

é só porque o dia muda ao meu redor

bom ou não

francamente cansa

e dá um desejo um tanto grande

e bem desmedido

de rasgar o véu desta imbecil desta realidade

de nada vale

é assim

ponto

que dia o quê

poderia ser noite dia ou qualquer outra hora em qualquer planeta de qualquer dimensão

o negócio sou eu

cansa ser a constante do universo

a coisa que vai sempre no mesmo sentido não importa onde esteja ou aonde seja

20.8.08

658

ganha-se a vida perdendo-a

em trabalhos idiotas tão sem sabor

fazer milhões de coisas

só para não depender de outros que façam por nós

milhões de coisas sem relevância

só para morrer afogado em tolas honrarias

milhões de coisas sem a menor importância

milhões de coisas ao fim das quais nada parece ter sido feito

não vou mais dormir

a vida é permanente sonolência

este sempre postergar

pois devemos ganhar a vida para viver

a vida e a gélida coexistência em sociedade

tantos de nós

só perdendo pedaços de si por aí

pedaços que depois nem se sabe perdidos

pedaços que nem se soube possuir

o que deus não nos tira rindo que não perdemos chorando

pedaços meus encontram-me na rua e perguntam-me se me lembro

nem a pau

nunca fui eu todo na vida

19.8.08

657

não sei bem que mal-estar é este

sei porém que ele vem crescendo com o tempo

meio que aos poucos

meio que como quem nada quer

não sei por que tão lento

se viver é sentir o tempo a erodir-me

bem que podia passar como um raio

sem feridos

se viver é sofrer

qual o propósito disto

se mesmo quando tudo se tem

nada se tem

e o dia

o dia escorre entre os dedos desta mão crispada

e a terrível dor horripila-me a nuca

e ela nem é tão terrível assim

é só dor

já nem sei se posso chamar o ar que entra e sai de respiração

ofego

e parece que o coração está por uma batida

em tristezas me consumo

e esqueço que não lembro

é toda uma máquina

construída ao acaso

e servindo a um fim bem claro

18.8.08

656

tropeço lá tropeço cá

pesado demais

lento demais

vivo ainda assim

como os outros mortais

minguando de desgracinha em desgracinha

nada de mais

só um corpo em deslocamento do útero ao túmulo

outro

mais para velho que para novo

outro

que vai para a mesa com aquela cara

de quem não entendeu nada absolutamente nada do começo ao fim

como coisa que flutua ou afunda

sem vontade que não alheia

coisa para a qual tudo veio muito tarde

ou muito cedo

como talvez para a maioria

simplesmente falta de sincronia

tudo meio solto meio largado

por aí meio esquecido

vida na hora da morte

morte na hora da vida

17.8.08

655

não me diga que a busca é idiota

qualquer busca

diga a este idiota que me habita

a este idiota que domina a química deste corpo

e que nele vive só

não me diga que preciso ser diferente

que nunca irei a lugar algum que preste

sou mero passageiro de mim

sinto que a rota de colisão está perto do fim

na vida tudo tem sido dor e só não é dor quando é vazio

e na verdade na maior parte do tempo é vazio

coisas que não acontecem

coisas que acontecem e são como nada

a tristeza

que nem é cortante

é uma tristezinha assim assim

penso por vezes se a tristeza não é uma forma de tédio

de não morrer nem viver

16.8.08

654

não sei por que ficar com esta história de metas na vida

que merda

vamos todos para a vala

que diferença há em deixar lembrança aqui

bom mesmo é distinguir-se enquanto vivo

o sucesso é uma maravilha

a única droga que deveras inebria

e quase todos morremos nesta crise de abstinência

quase todos conhecemos da vida somente o mais gélido dos anonimatos

nossa insignificância

gritamos no meio da rua

somos loucos

mais um punhado de loucos

15.8.08

653

dizem que deus anda por aí

em tudo que é lugar

que beleza isto

a vida é uma coação

o preço da liberdade não sei

a morte ainda posso alcançar

mas não sei se assim chego aonde quero

além de tudo tenho medo da morte

o resto não consigo imaginar

se a liberdade está nessas igrejas gananciosas

que vivem de adulação e promessas

continuarei nos grilhões desta falta de fé

a vida é esta coisa sem razão e sem conseqüência

que tanto me pesa e me assusta

e me deixa atônito no meio do tiroteio

estamos todos assim

movendo-nos segundo uma mente alheia

para não verem que como todos estamos ou somos incapazes de pensar

bela merda de consciência

nada nesta vida vai ou vem

tudo permanece tudo permanece tudo permanece

14.8.08

652

o mundo anda cada vez mais

com uma puta duma cara

de palhaçada

o mundo anda cada vez mais

com uma puta duma cara

dum lugar para

a felicidade de poucos

dia desses peço para descer deste lotação

já conheci o que me basta deste navio negreiro

sei que não estou no convés

e que a qualquer hora posso cair no porão

talvez eu morra velho

talvez eu morra lento

talvez eu morra doído

talvez eu morra doido

de certo sei que morrerei

e que esta nave louca nunca chegará a lugar algum

o que sei de certo é que viver é triste

e que quanto mais velho pior

tudo vai se tornando crime neste mundo sem espaço

tudo acaba sendo lugar sem vida para viver

13.8.08

651

mais um episódio desta palhaçada chamada democracia

agora querem saber se sou a favor ou contra o comércio de armas de fogo

a mim é indiferente essa porra

proíbam ou não a venda de armas

a sociedade permanecerá em guerra

mas sou obrigado a me manifestar

então manifesto-me com raiva

quero que este paisinho de merda

com suas elites pensantes de merda

acabe todo ele na merda

a mim me é indiferente

se o governo me deixa ou não me deixa ter uma arma

o governo só está aí para perturbar

para garantir a infelicidade da maioria

e isso ele faz com ou sem comércio de armas

parece que o efeito prático mais sensível desta palhaçada será o aumento da venda de armas estadunidenses

deus está sempre do lado do poder

e os imbecis são seus instrumentos

12.8.08

650

como saber se já tenho o bastante

se nem sei se sei

como reconhecer

se nem lembro de ter conhecido

vivo preso ao chão

como uma pedra no fundo de uma piscina

não há vento que me abale

como posso ser tão estático

tudo como sempre

tudo como eu

aqui

como se tudo permanecesse assim por força de um poder atrativo

vindo de dentro de mim

deus é a indiferença absoluta

e eu a impotência completa

minha falta de poder quase faz de mim um deus

talvez nada seja mais absoluto que isto

tudo sempre se acomoda de modo que as diferenças sejam indiferentes

deus família e igreja a paz e o ódio a guerra e a revolta

tudo resultado desta torta acomodação entre o mesmo e o igual

11.8.08

649

parece que a felicidade

é atributo

de poucos

muito poucos

como se fosse de ninguém

o que se diz que existe

e ninguém conhece

mas parece que está em toda parte

de toda sorte

que fazer

há ou não há

acontece ou não

assim

se é conosco ou não

puro acaso

algo de acaso de cartas marcadas

mas nada digno de tirar-nos o desejo de viver

ou o medo de morrer

a vida devia ser fácil

é somente vida

viver nesta grande ilusão

até o brinquedo ficar desinteressante

na vida muitas coisas vão sumindo

inclusive uma razoável noção de que o tempo passou

e custou a passar

viver sempre é comprido

muito

10.8.08

648

viver assim

como louco entre loucos

nada tem de especial

é assim viver

ou tedioso ou apavorante

escolher entre horror e dor

quando há escolha

viver com a consciência

gravada fundo

de que não há como ser feliz

sem antes aceitar que o gelo a percorrer-nos a nuca

é parte da vida

algo conhecido

que evitamos como uma lepra

aquilo que não se cala

só porque disso não há silêncio incabível

não há o que calar por não haver o que falar

ainda que houvesse

somos geneticamente medrosos

aceitamos viver encurralados no canto de tudo

sendo fração cada vez menor

de nada

9.8.08

647

é pecado ter dúvida

é pecado não ter fé

tudo que não seja incondicional submissão

aceitação pura e simples

é pecado tudo que não signifique a busca que nos impõem

é pecado qualquer busca

mesmo que vã

de autonomia

de construir nosso próprio cosmo

o mundo se nos desfaz entre os dedos

a vida é um passado ainda não vivido

que diferença mais pode haver entre estar aquém ou além do túmulo

8.8.08

646

todo dia há um dia

até quando não sei

para todos chega o dia em que não mais

por que comigo haveria de ser diferente

viver

assim

viver

o que chamam de vida

há quem viva melhor

decerto

como viver pior

como fazer diferente

nem sei se isto é viver mal

não sei como é outro viver

nada posso além de mim

um dia morrerei assim

este corpo ficará em silêncio

o mundo continuará

e ainda que não

viver não é nenhum segredo

é só esta coisa desconhecida de que todos dispomos

a todos imposta

para existirmos

fingindo-nos donos de nosso nariz

na vida como na morte