30.4.08

546

tenho fé

uma fé profunda

na infinda maldade de deus

deus é o diabo

a coisa mais ruim

criou-nos do escarro

que um dia cuspiu

repleto de desprezo

sobre este pobre mundo

criou-nos palhaços

para sermos contradições e desencontros

esmagados por conflitos e ódios e dores

frutos de um ventre podre

que encheu-nos destes sentimentos sem sentido

só porque ver o outro sofrer é o maior barato

e deus um omisso

que nos fez seus escravos

e só nos vem ver para lembrar-nos

de todo mal que nos pode ser infligido se o contrariarmos

somos prisioneiros da existência

reféns do criador

o senhor sem escrúpulo

que é melhor esquecer

e tentar viver na ilusão

de que se pode ser livre

de que há existência sem tormento

ou seja

sem merda de deus nenhuma

29.4.08

545

isto não foi feito para ser lido

só escrito

a vida por vezes também me causa uma impressão assim

de que foi feita só para ser morrida

que deus é esse

em que só vejo mal

melhor pensar que ele não existe

melhor ser fraco sozinho que se colocar na mão desse senhor que não distingue dor de prazer

melhor tentar viver ou morrer sem se deixar perturbar pela iminência da gigantesca mão

tiro este ar do peito

trago-lhe um novo

ainda assim tenho a sensação de que não respiro

nítida

ainda

mais tarde ou mais cedo vou à rua

quem sabe quando

quem sabe se para sempre

quem sabe haja existência que não seja assim

quem sabe se eu não me vir

se eu não pensar

28.4.08

544

quarenta e cinco anos é muito tempo

para nada acontecer

para voltar sempre à mesma vala sempre com a mesma cara

cada dia mais velha

não vim ao mundo para fazer o que faço

ou vim

sei lá

mas não queria fazer o que faço

que na verdade nem sei o que é

um monte de gestos abortados

montes de voltas sem ida

paradoxo mais besta

mas isto é a vida

ou o único ponto de vista que a respeito dela alcancei

do ponto de vista do carcereiro a prisão pode até ser divertida

que mais dizer

que estou cansado

que sofro

que tenho esta nojenta e irritante transpiração abundante

tudo verdade

só que para muitos tudo é muito mais verdade que para mim

salvo a transpiração

essa gente que se espreme nesses ônibus

e este desejo imensurável

de ver tudo convertido numa desgraça só

cumpriu-se

27.4.08

543

a cada segundo no mundo gente nasce e morre

gente fazendo de tudo ou quase tudo

gente demais

por todo lado

quase sempre sem cara

vivendo por obrigação

guardando os mais criminosos desejos

rostos desmanchados

e o mundo empenhado em pisotear-nos

assim como nós

já nem sei bem o que é mau

quando o sei é só depois que o fiz

quando vem

cortante

o arrependimento

a certeza de que nem o maior castigo

nem a maior das compaixões

o que fiz fica marcado em mim até o fim de toda eternidade

até que me arremessem talvez num imenso moedor

em que deus recicle a criação

quando cansa de seus brinquedos

26.4.08

542

quão enfadonho todo dia ter de falar de mim

não ter outro assunto

nem este na verdade

mas há a folha de papel

e eu

idiota

tentando me induzir a crer que o que escrevo tem valor

o dia passa

outro vem

outra folha

outro vazio

não

é o mesmo

cada dia que vem vê este mesmo eu aqui

e as palavras meu deus

as palavras parecem tão completamente iguais

existo

isso não faz a menor diferença

25.4.08

541

parece que só estou esperando um deslize meu para me levar a cometer uma besteira

de que eu me arrependa muito

pelo resto da vida e da morte

não seria a primeira vez

como dói pensar que a vida acaba

como dói pensar que a vida continua

mais babaca impossível

eu sei

embora não seja isso que eu pense de mim

só dos outros

evidente

troço mais besta este de crescer

o único crescimento talvez seja descobrir que sempre somos diminutos

e que sempre podemos diminuir infinitamente

sem nunca desaparecer

apenas nos tornando nulos

e existentes

24.4.08

540

não sei por que durmo assim quando durmo

como quem nada deve

logo eu

nossa como pode a humanidade ser tão burra

deixando-me solto e vivo por aí quando eu deveria estar preso e morto num presídio de segurança máxima

eu nem deveria estar aqui abrindo a boca

eu deveria dormir

a única coisa que o mundo necessita de mim

é distância

dizem que sou louco

soubessem quão próximos da verdade

só que a loucura não é tudo

triste mesmo é esta tristeza

há recantos de mim que nunca viram o sol

recantos dos quais a luz tem medo

recantos que nem sei onde ficam

23.4.08

539

não tenho nem metade de todo tempo do mundo

mas vivo como se tivesse tudo

basta continuar aqui

transpirando

insensível ao tempo

lá está o sol

o resto da mata

a cidade

e aquele grupo de pessoas que chamo de família

lá estavam

todos vão

vítimas da vida

depois de ser jovens morremos

não que a morte seja invariavelmente igual

embora ela seja

há morte aos trinta morte aos quarenta morte aos cinqüenta etc.

há a morte minha e a morte sua

esta inevitável espera

indesejável porvir

e as atrocidades

e os elevados princípios que governam as atrocidades

de cuja necessidade estamos mais que certos

só assim se mantém o mundo

não importa que ser não seja ter

na hora da ceifa todo pescoço é pescoço

22.4.08

538

o invisível silêncio atravessa as paredes

é dia

há sol

e gente e máquinas

não é o silêncio perfeito

é o silêncio possível

similitude quase nenhuma

no meu silêncio a única coisa em silêncio é a paz

alguns prédios desabaram outros se erguem

então quem desaba é o horizonte

toneladas de sonhos

o desejo de ver

só eu sobro

metade de mim

não sei onde foi parar o mundo

e os tristes frutos do que no mundo plantamos

agora nem desgraças me atingem

inexisto parcialmente

não passo de fração de cabeça de alfinete dentro desta mente

queria falar sem mentir

sem rimar

e sem aliterar imbecilmente

mas não tem jeito

por mais que eu queira não deixo de ser eu

21.4.08

537

hoje comecei bastante bem o dia

melhor do que o termino

um tanto mais um tanto menos

não há de ser nenhuma desgraça

é só a solidez do muro

abrupto

não dá para matar

mas dá para querer morrer

se é para isto que se vive

não há cansaço que baste

não há desejo mais forte que o ódio

não há placidez que prevaleça

é o esquecimento

como os dias

a maldita indiferença

na vida tudo passa

inclusive a vida

os extremos são o meio

tudo acontece

só não me diga que vou viver para sempre

nem que vou morrer agora

eis a paga

durma triste

são os últimos dias

não que nada vá acontecer

o pior que pode vir é o fim de tudo

o que

se olharmos bem

talvez nem seja tão mau assim

20.4.08

536

não tenho paixão

estou a um passo da perdição infinita

velho caminho

nada de bom pode acontecer

o que já seria bom

mas algo há de mau

o mal

a mórbida figura

que sempre inesperada

como se fosse ninguém

uma hora isto vai sair dos eixos

a fera

e seus olhos

e seu hálito

e seu sonoro ofegar

na madrugado o travesseiro todo suado

e o sabor

nossa por que me lembro disto

isto não é lembrança

isto é agora

exatamente já

ninguém precisa me dizer o que fazer

não estou disposto

meu desejo é tão simples

e desconhecido

19.4.08

535

desejo ver tudo que não vejo neste momento

desejo ver tudo

desejo que a vida

e a morte

e o ar que respiro

esta imobilidade

e todo o festival de desgraças

e todos que com ele se deleitam

e toda esta triste e meio cômica

passagem de fatos

diante da janela

enquanto eu com ela

a letargia

lívida loucura

montes e montes e montes de imbecis

confundindo dúvidas com certezas

na realidade tudo é incerto

salvo a incerteza

na realidade tudo é belo

mas há bilhões de vozes falando ao mesmo tempo

quanto mais se falar mais próximo se estará da solução

é a certeza

ninguém se faz de rogado

somos o animal que fala

que sempre tem palavras

embora não pensamentos

embora não uma boa maneira de viver

ou de ver a vida

18.4.08

534

a vida é vária

dizem

né não

digo

então morra

me dirão

e quem garante que minha morte será diferente

dizem que há vida depois dela

ou seja o problema não acaba

segue-se vivendo

quem sabe haja outros modos de existir

talvez não inteligentes como este

mas bons

ao contrário deste

porém mesmo que haja modo melhor

parece que nunca me verei livre do terror de voltar a viver assim

no mundo do sublime e do hediondo

onde sempre se está perdido

ofuscado pelas trevas

meu coração

que aqui não há luz que ilumine só o bem

são todos loucos

somos todos

eu

mais um

não o pior mas bem perto

faço-me de lúcido

e converto este olhar basbaque em sinal de sabedoria

17.4.08

533

como viver com um ser estranho dentro de si

ora como todos vivem

nesta simulação de prazer e saber

de indiferença e desejo

como se não fosse você o expropriado

ou se nada disto houvesse

acorde

ou fique com essa cara de bunda ao vento

talvez seja tudo igual

só saberemos depois que a turba passar sobre nós

feito este mecanismo de amar e de odiar que nos governa

e o esquecimento nas profundezas de nós

algo passou ou não passou

esqueci

é tudo

sei que esqueci porque percebo uma falta

sinto a lacuna

impossível entretanto dizer se o ausente me pertence

de qualquer modo

ainda não me tornei deus

salvo se ser deus for isto aqui

que bobagem então se sou deus

bem só posso dizer que deus é um tremendo zé mané

não sei se sou vítima

mas sinto-me carrasco

sofrer e fazer sofrer

16.4.08

532

eventualmente parece que passaram milhões de anos entre agora e um segundo atrás

e coisas acontecidas há séculos parece que até ontem estavam aqui

são indícios de anos acumulados sobre anos

o sorridente passado

cada dia mais próspero

gordo de tanto acontecimento

que agora nem pode ser novidade

só todo este caminho

aí adiante

e a suposição dos passos faltantes

hipóteses apenas

de certo só a vida

que até segundos atrás ainda existia

os segundos mais longos do mundo

na verdade estou só supondo

o brilho passa

pensamos que a vida

sem brilho

também

nada

sem brilho pode se viver até mais que com

há cadáveres esquecidos sobre todas as mesas

fingindo que esqueceram

que não se vive deste jeito

há anos eles morrem assim

15.4.08

531

o mundo dá voltas

nunca se está em cima nem embaixo

só se gira

pensa-se e não se entende

aonde esta roda gigantesca vai chegar

assim sem querer

gira-se e pronto

a máquina não sabe parar

e nós não sabemos como dela sair

é o velho e alucinante redemoinho

que não pensa

redemoinhos não são para pensar

nem para curar náuseas

nuvens no alto e lama embaixo

é assim

e quando pára a vida

talvez uma roda tombe em algum lugar

porém nada em nada se altera

o giro do mundo

que vai pelo infinito adentro ou afora

até o fim

cuja tristeza ou alegria

tem origem no inesperado

de súbito

sem dor e sem anestesia

como se imensa mão

jogasse-nos nos contextos

mais distantes de nós

para anular nossa busca

14.4.08

530

dias há em que a boca acorda amarga

não de ressaca

mas de simplesmente se estar aqui

e de ter sido aplainado pelo rolo compressor do destino

justo quando se cria não ter nenhum relevo

engano

basta existir para tomar pancada

e o destino tem poderes tão tamanhos

e um espírito tão diminuto

que para ele nenhum gesto é bastante mesquinho

ele é capaz de

sendo dono de todas as fábricas de doces

ainda assim tirar o doce da boca da criança

além de fazer o pirralho vomitar a parte da guloseima que já ingerira

talvez eu esteja cansado de perder

não de apenas desejar

mas de desejar em vão

já ficou mais que demonstrado

não sei distinguir amor autêntico de amor falso

salvo quando vem o abandono

muito tarde para qualquer providência que me poupe da dor

tudo já se demonstrou

sou uma besta atarantada

13.4.08

529

dias sempre de sol

mesmo que tristes

não penso em praia

como fede a maresia

e o frenesi dos turistas com suas panças cheias de bosta e suas caras ansiosas

turistas e trabalhadores

todos tão empenhados em cumprir sua principal tarefa neste mundo

decompositores do meio ambiente

e depois de tudo passado

quando tudo estiver no fim

quem poderá dizer não àquela cara de pobre coitado

que só um humano sabe fazer

todos os outros animais têm dignidade

aceitam o fim das coisas

sofrem com classe

elegância mesmo

o homem porém especializou-se na arte do esperneio

na arte de lesar tudo e todos e depois em lágrimas copiosas rogar humildemente a deus que lhe devolva tudo que ele homem botou pela janela

e se deus como sempre não responder então há o espetáculo

toda aquela cena a fim de demonstrar quanto o sofrimento o destrói

quão cruel é seu destino

o qual ele roga a deus para ser mudado

12.4.08

528

multidões nunca são agradáveis

multidões são animais dos quais somos somente células

nem sei se saudáveis

mas o pior é que esta massa

embora composta de tantos de nós

no mais das vezes

assim como nós

só tem uma cabeça

nem um pouco maior que qualquer de suas partes

e incapaz de pensar em todos

querendo ou não

o resto é tudo pedaços sem cara

pode ser qualquer um

mais bonito mais feio mais bobo

grande diferença

você só vai ser posto ali para servir de calço e permanecer em silêncio

até que venha a ordem de morrer

ou qualquer outra que demonstre quão passageiro e vão é viver

como tudo que se diz que viver representa

extremos

só vemos extremos

e talvez não estejamos tão errados

só vemos tudo ou nada

11.4.08

527

não posso contar comigo

isso mesmo

nunca sei quando vou estar para mim

quantas vezes já não entrei em desespero

por não saber nem a custo de reza qual o ser que me habitava

às vezes me odeio por me conhecer tanto

ao menos o bastante para saber que não poderei contar comigo

quando mais precisar estarei ou dormindo ou de cara cheia ou triste demais ou nada mais que perverso

comprazendo-me de meu sofrimento

pisando-me

não sei por que não sou capaz de resistir

talvez porque eu não seja eu

mas sim esta estranha criatura

ou o criador desta virtualidade

que penso ser

ou sou

grande nova

perdi a conta do tempo que já passei aqui

sentando esta mesma cara nesta mesma parede

certo de que ela é o caminho

e de que todo caminho é assim