607
já que mesmo querendo falar a verdade só consigo mentir
mintamos então
e aos que consideram válido o aprendizado pela dor
desejo-lhes uma unha encravada no cu
mais um brógui
607
já que mesmo querendo falar a verdade só consigo mentir
mintamos então
e aos que consideram válido o aprendizado pela dor
desejo-lhes uma unha encravada no cu
606
ainda bem que a morte está cada vez mais perto
quem sabe depois dela algo mude de fato
não que eu acredite
na verdade acredito
mas gostaria de não acreditar
gostaria que todas as minhas crenças morressem
605
tudo que desejo é o fim desta queda
de um modo macio
nada dessas porras que depois nos põem a indagar-lhes o sentido
não há nada inteiramente bom no mundo
nem nada inteiramente mau
tudo depende do ponto de vista
da tristeza ou da alegria
existência
por que temos de levar isto tão a sério
a vida vale a pena só nos três primeiros anos
se é que vale
das profundezas de meu esquecimento
vem a impressão de um tempo de fascinantes descobertas
mas havia os adultos
foi só deixar o tempo passar
tornei-me mais um
a apavorar crianças pela vida
ensinando-as a ser como eu
604
muitas vezes penso em eliminar problemas de minha vida
e acho que deveria começar pela própria vida
ninguém deveria aceitar ser refém de deus
fiado numa promessa de futuros benefícios
promessas todos fazem
falar é fácil demais
difícil é existir
todo dia
se existimos para viver também existimos para morrer
esta merda de dualidade já me encheu o saco
bem e mal sempre em oposição
e se o bem até que é bonzinho
o mal é horrivelmente mau
e cada dia nos traz algo de novo
e não existe coisa pior que desgraça nova
cansei desta história de yin e yang macho e fêmea positivo e negativo amor e ódio alto e baixo
603
em silêncio a mulher de pedra atravessa a casa
com seu pesado fardo
de sabores amargos
tudo na casa veste luto
toda esta triste sucessão de cômodos
toda esta mórbida sustentação de paredes
há alguma monstruosidade nisto
monstruosidade sutil
imperceptível
não é deus
e mesmo que o seja
quanto no mundo não é o que é jamais sendo o que daquilo esperamos
só sei que se arrastam
a mulher de pedra e seu fardo
sua longa mágoa
sua velhice
seu irrefreável desejo de encher de sombra o mundo
tudo acabou
a vida há muito deixou de ser vida
não preciso de mais tristeza para ser triste
tudo está horrível
e pode ficar muito pior
basta nascer novos dias
602
infelicidade a dois é isto
pôr uma pedra no peito
dura pesada pontiaguda cinzenta taciturna cotidiana indiferente sombria funesta nefasta seca impassível insossa
viver por vício por já se estar aqui por não se saber o que querer
não mais brigar com o destino e aceitar sua sordidez
seja obra de quem for
é obra de um filho da puta
com ou sem consciência
isto é como o abandono
como viver numa espécie de lixo moral
sem caminho nem carícia
sem sossego nem tormento
601
parece até que o dia acabou
sinto uma noite
que não sei para onde vai
mas esta sensação
de que a qualquer hora algo desabará
algo que pode ser importante
sem precedente
pois esta espera está quase caduca
nunca muda
ela tanto quanto eu
em silêncio
em atrito
em sentidos opostos
amarrados um ao outro
cumprindo o trajeto
esquecendo que o caminho mais curto é a reta
e que a respiração é mais agradável que a asfixia
a noite é comprida
dá voltas e voltas em torno de mim
não é noite em que se durma
é noite das que se sentem chegando quando já estão instaladas
pegando cerveja na geladeira e mudando os canais da tevê
600
de repente parece que o tempo acabou
e que tudo na vida se resumiu à permanente busca de lugar e momento e de esquecimento
sem lembrança da pequenez
sem querer mais viver em dimensão alguma
com a certeza de que deus nem vem ao caso
é esta espera
esta espera infundada
melhor dizendo esta esperança
como quero que ela morra de uma vez por todas
quem sabe assim eu descubra a perfeita inexistência
quem sabe assim me venha um prazer eterno
o de nada sentir
de nada ser
sem compromisso nem porra nenhuma
sem querer nem dever
sem ser
sem saber nem ignorar
sem deus nem diabo
sem ser nem memória
nada simplesmente
com necessidade alguma
599
definitivamente não conheço deus
se o conheço e ignoro porém
ele deve ser um camarada bem desinteressante
pois não guardo lembrança alguma
só não falo isso por aí a torto e a direito
porque parece que o sujeito tem um monte de chegados
vários deles bastante violentos
não quero servir de saco de pancada
também não estou a fim de ser o animal exótico
o excêntrico
embora eu creia já o ser
pelo modo como me olham na rua
pela repulsa com que me encaro no espelho
não sou melhor que ninguém
gostaria de ser mas infelizmente não o sou
e sou tão diferente dos outros quanto os outros o são entre si
apenas
porém se digo de minhas descrenças
isso me faz de súbito o mais nocivo
598
nunca serei importante
e não digo isso por me crer imerso em puro relativismo
um relativismo absoluto
tão absoluto
que nele nada alcança relevo
nesse contexto nem eu nem nada nunca seremos importantes
mas deixando o universo de lado
nunca terei importância nem mesmo neste nosso mundinho estreito
nem dessa importância sem importância serei capaz
nasci para ser assim
vivo para morrer assim
sem cara no meio da multidão sem cara
um pouco grande demais
mas mesmo assim
um a mais
e só
nunca
eu não acredito mas é a pura verdade
nunca serei mais que isto
que talvez seja muito
597
como negar
a manhã de sol sempre ajuda
sinto-me menos morto
sem deixar de ser
vejo a luz
creio-me outro
sinto disposição
talvez aí resida o mal
esperar de um ser humano disposição para o bem
deixar que o homem se encha da energia do sol para quem sabe um dia
acabar com o próprio sol
deus é grande
mas mesmo que não
o homem é espaçoso
vai a todo lugar
ocupa tudo
qual imensa sucuri
o ser humano envolve a vítima
aplica-lhe fortíssima constrição
extrai tudo
depois chama os ambientalistas
pronto
resolvido
o cadáver já tem quem por ele vele
busquemos novas fontes
somos inteligentes
somos demais
até hoje nada nem ninguém pôde conosco
nem nunca
sequer o sol
596
aqui como sempre
existindo sem ser notado
cotidianos afora
quase sempre sem sabor
enchendo uma memória de que nem tenho consciência
televisão trabalho trânsito talheres na mesa
sem palavra
viver é passar pela vida
ninguém pára aqui
por mais parado que pareça
estamos a caminho de um encontro ou de um desencontro
quem sabe
se perguntas trouxessem respostas
a vida passa
gostaria que isso me causasse alguma reação
quanto já não passou
escapou-me por entre os dedos
escorreu
com tanta calma
595
quero ser mais rápido que o dia
quero que a vida seja maior que meus desejos
a falta de tempo deixa-me sem ação
não ter tempo é não ter nada para fazer
tudo parece correr para longe
acho que sinto náusea
acho que nada sucede
e o medo não pára
viver é assustador
assustador e bonito
mas não há beleza que suplante o medo
não há medo belo
nem feio
só medo
este medo que vira raiva que vira amor que vira ânsia que vira vazio que vira desejo
594
quem sabe haja um ponto de vista menos pessimista e mesmo assim aceitável
uma razão de viver
se a alegria e a tristeza são mentiras
mais vale não ver o tempo
a vida pode não ser uma grande oportunidade
e não sei se a morte
talvez o jeito seja aceitar esta condenação à existência
593
quem sabe eu não agrida ninguém no trânsito
quem sabe eu não me aborreça no trabalho
quem sabe hoje
não sei o que é ser feliz
e talvez nunca
nem o que é ser infeliz
e talvez eu nunca saiba nada
592
nem parecemos donos de algo
tudo acaba
menos este engano
cujo fim parece ser a morte
se é que fim há
talvez a danação seja eterna
talvez a consciência nunca nos deixe
a fraqueza o impulso e a consciência
impossível inferno maior
mas há
o medo da morte
decerto mais terrível que a morte mesma
e no fim vem o fim
mas quiçá deixamos plantada uma semente
nossas faces com suas expressões gravadas na face deste planeta
nossas mentes com tantas outras a ecoar no universo
tudo um conflito sem fim
tudo um permanente advento
não sei se estamos vivos não sei se teremos direito à morte
pensamos que existimos
isso nos incha de certezas
591
somos tão ínfimos
esquecimento
queremos a certeza contrária
queremos que nos digam que não somos o que somos
que não há loucos gananciosos sem escrúpulos governando o mundo
e que o mundo não é este hospício sem esperança
cremos possuir crenças e valores
tudo em nome deles
um monte de dor
e as velhas perguntas
por que eu meu deus por que eu
que final triste e merecido
todos dizendo que buscavam a felicidade
e a troco disso acabando com toda felicidade que vissem pelo caminho
nada tem o direito de existir se eu não existo
nada pode ser maior do que eu
e no entanto tudo ou quase tudo o é
salvo minhas vítimas
590
porque a vida é tudo
algo largado na rua
donos desta sujeição
saímos por aí crentes da liberdade
crendo-nos imunes à desgraça em que vivemos
somos corpos que surgem crescem e envelhecem
sem nada que nos distinga de uma pedra de uma ameba de uma geladeira
a terra tudo devora
assim como as doenças
589
nada como a vida
somos restos
e no entanto aqui estamos
vivos por força de alguma vontade
mortos de modo idêntico
quem sabe esquecendo
quem sabe lembrando
tudo na hora errada
não foi minha culpa mãe
por favor não me bata não me humilhe não me olhe como se eu fosse o que não sou ou o que sou
meu deus do céu que nem existe
naqueles momentos eu estava aprendendo
e percebia o prazer de ser carrasco
de reduzir alguém a mim
588
não sou tão importante
nada depende de mim
apenas engano
e neste engano o primeiro sou eu
olho-me como se eu fosse venerável
ando como se eu fosse dono de mim
cheio de medo de que descubram o que é tão evidente
assumo ares
poso
tudo que sei é que não sei quem sou
na dúvida procuro criar a farsa mais convincente
de algo respeitável e acima de qualquer suspeita
e vivo certo de que não engano ninguém
587
não importa quantas coisas haja no mundo
se eu soubesse olhá-las com calma
não digo com amor
nem com prazer
com calma apenas
meio de fora de mim
sem pensar demais
sem pensar aliás
sem este blablablá infindo
se isto parasse
se este falatório eterno
talvez eu descobrisse
talvez eu começasse
talvez
se me fosse concedido o silêncio
porque há mais de quarenta anos estou aqui
com este louco falando sem ouvir nem pensar nem parar
586
não existe lembrança boa
o passado não deveria ser lembrado se não pode ser revivido
a memória é uma máquina de dor permanente
sempre uma razão para ser triste
e essas conversas de amor
por que não paramos de falar em amor
cansei de acreditar e de torcer para que tudo seja diferente
agora só desejo a inexistência
que sei que nunca
ela já está aqui
sou uma ilusão de ser
fruto de uma mente doentia e má
nunca serei mais nada
e se existirei para sempre é porque a mente que me concebeu também é prisioneira da existência
não quero ser só
e só existir não basta
há o sexo e mais todas as coisas boas que a vida pode nos proporcionar
a verdade é uma mentira crível
ou simplesmente é a verdade
como seja
ela não rima com liberdade
585
se eu disser que chorei por causa de um pintinho
todos rirão
eu mesmo riria se outro me dissesse isso
querer chamar nossa atenção para o lado triste da vida por meio de um pintinho
tenha dó
neste momento em que escrevo o tal pintinho ainda está vivo
ele está aqui perto de mim
sob a luz de uma lâmpada
minha mulher está tentando curá-lo
mas o pintinho tem um olhar
tudo que é vivo tem um olhar
até um cego tem um olhar
até uma ameba deve ter um olhar
e por ele se traduz antes de tudo nossa atitude perante a vida
o olhar deste pintinho deste cômico pintinho
é indiferente
é o olhar de indiferença dos mortos
aquele olhar sem mais nenhuma expectativa
talvez a mais alta expressão da tranqüilidade
tão tranqüilo que assusta
que causa repulsa
tranqüilo porque sincero
porque não faz a mínima questão de ser mudado
584
o mundo por vezes é belo e nos dá prazer
às vezes até dá pra crer no amor
e dói
depois que o conhecemos melhor
e sabemos que por trás de todo prazer há uma dor
e que por trás de toda dor há outra dor
tire quantas camadas quiser
o que vem depois é o mesmo
o velho espetáculo
583
sempre acordar num dia da vida
e dizer para si
não sei se com agrado
olha tudo está como sempre
e daí digo
puxa estou vivo
e isto para mim vale muito
estar vivo e sem dor
estar vivo e sem sofrer
estar vivo e apenas sob ameaça
582
todo dia amanhece entardece anoitece
rotina
tão enorme
olha que ainda nem acabou
que fazer com tantos dias
ficar olhando feito besta para este caderno
dormir
enrolar no trabalho
e claro
desejar
desejar infinitamente
desejar de tudo
até que mais nenhum desejo tenha graça
e então desejar não desejar
e saber que nunca
581
eu não tenho o direito de esquecer
mas esqueço
não importa o castigo
esqueço
deixo coisas por todos os cantos
e sempre tropeço em pedaços de tudo
e caio
e toda queda minha tem conseqüências imprevistas
e más
o tipo de surpresa que nem surpreende
580
não sei como acordei ontem
mas de algum modo
pois à cama voltei no fim do dia
em algum lugar estive
esta é minha vida
todo dia
neste louco inacreditável e tão normal delírio
pensando em sexo e contas
e pagando as contas e não fazendo sexo
e então surge-nos diante dos olhos a perfeição
só para dizer-nos nunca serei sua
579
apavorante vida
como só a vida
viver é morrer de medo
ora deus ora diabo
no fim vale mais o terror da espera que o fato
estou cansado de ser movido a medo e vaidade
se a vida é isto
para que complicar
para que tanta expectativa
talvez ela seja mesmo algo sem importância
por que lutar então
por fraqueza
por ignorância
na verdade não se luta
existe-se
por não se saber inexistir