30.6.08

607

já que mesmo querendo falar a verdade só consigo mentir

mintamos então

e aos que consideram válido o aprendizado pela dor

desejo-lhes uma unha encravada no cu

29.6.08

606

ainda bem que a morte está cada vez mais perto

quem sabe depois dela algo mude de fato

não que eu acredite

na verdade acredito

mas gostaria de não acreditar

gostaria que todas as minhas crenças morressem

28.6.08

605

tudo que desejo é o fim desta queda

de um modo macio

nada dessas porras que depois nos põem a indagar-lhes o sentido

não há nada inteiramente bom no mundo

nem nada inteiramente mau

tudo depende do ponto de vista

da tristeza ou da alegria

existência

por que temos de levar isto tão a sério

a vida vale a pena só nos três primeiros anos

se é que vale

das profundezas de meu esquecimento

vem a impressão de um tempo de fascinantes descobertas

mas havia os adultos

foi só deixar o tempo passar

tornei-me mais um

a apavorar crianças pela vida

ensinando-as a ser como eu

27.6.08

604

muitas vezes penso em eliminar problemas de minha vida

e acho que deveria começar pela própria vida

ninguém deveria aceitar ser refém de deus

fiado numa promessa de futuros benefícios

promessas todos fazem

falar é fácil demais

difícil é existir

todo dia

se existimos para viver também existimos para morrer

esta merda de dualidade já me encheu o saco

bem e mal sempre em oposição

e se o bem até que é bonzinho

o mal é horrivelmente mau

e cada dia nos traz algo de novo

e não existe coisa pior que desgraça nova

cansei desta história de yin e yang macho e fêmea positivo e negativo amor e ódio alto e baixo

26.6.08

603

em silêncio a mulher de pedra atravessa a casa

com seu pesado fardo

de sabores amargos

tudo na casa veste luto

toda esta triste sucessão de cômodos

toda esta mórbida sustentação de paredes

há alguma monstruosidade nisto

monstruosidade sutil

imperceptível

não é deus

e mesmo que o seja

quanto no mundo não é o que é jamais sendo o que daquilo esperamos

só sei que se arrastam

a mulher de pedra e seu fardo

sua longa mágoa

sua velhice

seu irrefreável desejo de encher de sombra o mundo

tudo acabou

a vida há muito deixou de ser vida

não preciso de mais tristeza para ser triste

tudo está horrível

e pode ficar muito pior

basta nascer novos dias

25.6.08

602

infelicidade a dois é isto

pôr uma pedra no peito

dura pesada pontiaguda cinzenta taciturna cotidiana indiferente sombria funesta nefasta seca impassível insossa

viver por vício por já se estar aqui por não se saber o que querer

não mais brigar com o destino e aceitar sua sordidez

seja obra de quem for

é obra de um filho da puta

com ou sem consciência

isto é como o abandono

como viver numa espécie de lixo moral

sem caminho nem carícia

sem sossego nem tormento

24.6.08

601

parece até que o dia acabou

sinto uma noite

que não sei para onde vai

mas esta sensação

de que a qualquer hora algo desabará

algo que pode ser importante

sem precedente

pois esta espera está quase caduca

nunca muda

ela tanto quanto eu

em silêncio

em atrito

em sentidos opostos

amarrados um ao outro

cumprindo o trajeto

esquecendo que o caminho mais curto é a reta

e que a respiração é mais agradável que a asfixia

a noite é comprida

dá voltas e voltas em torno de mim

não é noite em que se durma

é noite das que se sentem chegando quando já estão instaladas

pegando cerveja na geladeira e mudando os canais da tevê

23.6.08

600

de repente parece que o tempo acabou

e que tudo na vida se resumiu à permanente busca de lugar e momento e de esquecimento

sem lembrança da pequenez

sem querer mais viver em dimensão alguma

com a certeza de que deus nem vem ao caso

é esta espera

esta espera infundada

melhor dizendo esta esperança

como quero que ela morra de uma vez por todas

quem sabe assim eu descubra a perfeita inexistência

quem sabe assim me venha um prazer eterno

o de nada sentir

de nada ser

sem compromisso nem porra nenhuma

sem querer nem dever

sem ser

sem saber nem ignorar

sem deus nem diabo

sem ser nem memória

nada simplesmente

com necessidade alguma

22.6.08

599

definitivamente não conheço deus

se o conheço e ignoro porém

ele deve ser um camarada bem desinteressante

pois não guardo lembrança alguma

só não falo isso por aí a torto e a direito

porque parece que o sujeito tem um monte de chegados

vários deles bastante violentos

não quero servir de saco de pancada

também não estou a fim de ser o animal exótico

o excêntrico

embora eu creia já o ser

pelo modo como me olham na rua

pela repulsa com que me encaro no espelho

não sou melhor que ninguém

gostaria de ser mas infelizmente não o sou

e sou tão diferente dos outros quanto os outros o são entre si

apenas

porém se digo de minhas descrenças

isso me faz de súbito o mais nocivo

21.6.08

598

nunca serei importante

e não digo isso por me crer imerso em puro relativismo

um relativismo absoluto

tão absoluto

que nele nada alcança relevo

nesse contexto nem eu nem nada nunca seremos importantes

mas deixando o universo de lado

nunca terei importância nem mesmo neste nosso mundinho estreito

nem dessa importância sem importância serei capaz

nasci para ser assim

vivo para morrer assim

sem cara no meio da multidão sem cara

um pouco grande demais

mas mesmo assim

um a mais

e só

nunca

eu não acredito mas é a pura verdade

nunca serei mais que isto

que talvez seja muito

20.6.08

597

como negar

a manhã de sol sempre ajuda

sinto-me menos morto

sem deixar de ser

vejo a luz

creio-me outro

sinto disposição

talvez aí resida o mal

esperar de um ser humano disposição para o bem

deixar que o homem se encha da energia do sol para quem sabe um dia

acabar com o próprio sol

deus é grande

mas mesmo que não

o homem é espaçoso

vai a todo lugar

ocupa tudo

qual imensa sucuri

o ser humano envolve a vítima

aplica-lhe fortíssima constrição

extrai tudo

depois chama os ambientalistas

pronto

resolvido

o cadáver já tem quem por ele vele

busquemos novas fontes

somos inteligentes

somos demais

até hoje nada nem ninguém pôde conosco

nem nunca

sequer o sol

19.6.08

596

aqui como sempre

existindo sem ser notado

cotidianos afora

quase sempre sem sabor

enchendo uma memória de que nem tenho consciência

televisão trabalho trânsito talheres na mesa

sem palavra

viver é passar pela vida

ninguém pára aqui

por mais parado que pareça

estamos a caminho de um encontro ou de um desencontro

quem sabe

se perguntas trouxessem respostas

a vida passa

gostaria que isso me causasse alguma reação

quanto já não passou

escapou-me por entre os dedos

escorreu

com tanta calma

18.6.08

595

quero ser mais rápido que o dia

quero que a vida seja maior que meus desejos

a falta de tempo deixa-me sem ação

não ter tempo é não ter nada para fazer

tudo parece correr para longe

acho que sinto náusea

acho que nada sucede

e o medo não pára

viver é assustador

assustador e bonito

mas não há beleza que suplante o medo

não há medo belo

nem feio

só medo

este medo que vira raiva que vira amor que vira ânsia que vira vazio que vira desejo

17.6.08

594

quem sabe haja um ponto de vista menos pessimista e mesmo assim aceitável

uma razão de viver

se a alegria e a tristeza são mentiras

mais vale não ver o tempo

a vida pode não ser uma grande oportunidade

e não sei se a morte

talvez o jeito seja aceitar esta condenação à existência

16.6.08

593

quem sabe eu não agrida ninguém no trânsito

quem sabe eu não me aborreça no trabalho

quem sabe hoje

não sei o que é ser feliz

e talvez nunca

nem o que é ser infeliz

e talvez eu nunca saiba nada

15.6.08

592

nem parecemos donos de algo

tudo acaba

menos este engano

cujo fim parece ser a morte

se é que fim há

talvez a danação seja eterna

talvez a consciência nunca nos deixe

a fraqueza o impulso e a consciência

impossível inferno maior

mas há

o medo da morte

decerto mais terrível que a morte mesma

e no fim vem o fim

mas quiçá deixamos plantada uma semente

nossas faces com suas expressões gravadas na face deste planeta

nossas mentes com tantas outras a ecoar no universo

tudo um conflito sem fim

tudo um permanente advento

não sei se estamos vivos não sei se teremos direito à morte

pensamos que existimos

isso nos incha de certezas

14.6.08

591

somos tão ínfimos

esquecimento

queremos a certeza contrária

queremos que nos digam que não somos o que somos

que não há loucos gananciosos sem escrúpulos governando o mundo

e que o mundo não é este hospício sem esperança

cremos possuir crenças e valores

tudo em nome deles

um monte de dor

e as velhas perguntas

por que eu meu deus por que eu

que final triste e merecido

todos dizendo que buscavam a felicidade

e a troco disso acabando com toda felicidade que vissem pelo caminho

nada tem o direito de existir se eu não existo

nada pode ser maior do que eu

e no entanto tudo ou quase tudo o é

salvo minhas vítimas

13.6.08

590

porque a vida é tudo

algo largado na rua

donos desta sujeição

saímos por aí crentes da liberdade

crendo-nos imunes à desgraça em que vivemos

somos corpos que surgem crescem e envelhecem

sem nada que nos distinga de uma pedra de uma ameba de uma geladeira

a terra tudo devora

assim como as doenças

12.6.08

589

nada como a vida

somos restos

e no entanto aqui estamos

vivos por força de alguma vontade

mortos de modo idêntico

quem sabe esquecendo

quem sabe lembrando

tudo na hora errada

não foi minha culpa mãe

por favor não me bata não me humilhe não me olhe como se eu fosse o que não sou ou o que sou

meu deus do céu que nem existe

naqueles momentos eu estava aprendendo

e percebia o prazer de ser carrasco

de reduzir alguém a mim

11.6.08

588

não sou tão importante

nada depende de mim

apenas engano

e neste engano o primeiro sou eu

olho-me como se eu fosse venerável

ando como se eu fosse dono de mim

cheio de medo de que descubram o que é tão evidente

assumo ares

poso

tudo que sei é que não sei quem sou

na dúvida procuro criar a farsa mais convincente

de algo respeitável e acima de qualquer suspeita

e vivo certo de que não engano ninguém

10.6.08

587

não importa quantas coisas haja no mundo

se eu soubesse olhá-las com calma

não digo com amor

nem com prazer

com calma apenas

meio de fora de mim

sem pensar demais

sem pensar aliás

sem este blablablá infindo

se isto parasse

se este falatório eterno

talvez eu descobrisse

talvez eu começasse

talvez

se me fosse concedido o silêncio

porque há mais de quarenta anos estou aqui

com este louco falando sem ouvir nem pensar nem parar

9.6.08

586

não existe lembrança boa

o passado não deveria ser lembrado se não pode ser revivido

a memória é uma máquina de dor permanente

sempre uma razão para ser triste

e essas conversas de amor

por que não paramos de falar em amor

cansei de acreditar e de torcer para que tudo seja diferente

agora só desejo a inexistência

que sei que nunca

ela já está aqui

sou uma ilusão de ser

fruto de uma mente doentia e má

nunca serei mais nada

e se existirei para sempre é porque a mente que me concebeu também é prisioneira da existência

não quero ser só

e só existir não basta

há o sexo e mais todas as coisas boas que a vida pode nos proporcionar

a verdade é uma mentira crível

ou simplesmente é a verdade

como seja

ela não rima com liberdade

8.6.08

585

se eu disser que chorei por causa de um pintinho

todos rirão

eu mesmo riria se outro me dissesse isso

querer chamar nossa atenção para o lado triste da vida por meio de um pintinho

tenha dó

neste momento em que escrevo o tal pintinho ainda está vivo

ele está aqui perto de mim

sob a luz de uma lâmpada

minha mulher está tentando curá-lo

mas o pintinho tem um olhar

tudo que é vivo tem um olhar

até um cego tem um olhar

até uma ameba deve ter um olhar

e por ele se traduz antes de tudo nossa atitude perante a vida

o olhar deste pintinho deste cômico pintinho

é indiferente

é o olhar de indiferença dos mortos

aquele olhar sem mais nenhuma expectativa

talvez a mais alta expressão da tranqüilidade

tão tranqüilo que assusta

que causa repulsa

tranqüilo porque sincero

porque não faz a mínima questão de ser mudado

7.6.08

584

o mundo por vezes é belo e nos dá prazer

às vezes até dá pra crer no amor

e dói

depois que o conhecemos melhor

e sabemos que por trás de todo prazer há uma dor

e que por trás de toda dor há outra dor

tire quantas camadas quiser

o que vem depois é o mesmo

o velho espetáculo

6.6.08

583

sempre acordar num dia da vida

e dizer para si

não sei se com agrado

olha tudo está como sempre

e daí digo

puxa estou vivo

e isto para mim vale muito

estar vivo e sem dor

estar vivo e sem sofrer

estar vivo e apenas sob ameaça

5.6.08

582

todo dia amanhece entardece anoitece

rotina

tão enorme

olha que ainda nem acabou

que fazer com tantos dias

ficar olhando feito besta para este caderno

dormir

enrolar no trabalho

e claro

desejar

desejar infinitamente

desejar de tudo

até que mais nenhum desejo tenha graça

e então desejar não desejar

e saber que nunca

4.6.08

581

eu não tenho o direito de esquecer

mas esqueço

não importa o castigo

esqueço

deixo coisas por todos os cantos

e sempre tropeço em pedaços de tudo

e caio

e toda queda minha tem conseqüências imprevistas

e más

o tipo de surpresa que nem surpreende

3.6.08

580

não sei como acordei ontem

mas de algum modo

pois à cama voltei no fim do dia

em algum lugar estive

esta é minha vida

todo dia

neste louco inacreditável e tão normal delírio

pensando em sexo e contas

e pagando as contas e não fazendo sexo

e então surge-nos diante dos olhos a perfeição

só para dizer-nos nunca serei sua

2.6.08

579

apavorante vida

como só a vida

viver é morrer de medo

ora deus ora diabo

no fim vale mais o terror da espera que o fato

estou cansado de ser movido a medo e vaidade

se a vida é isto

para que complicar

para que tanta expectativa

talvez ela seja mesmo algo sem importância

por que lutar então

por fraqueza

por ignorância

na verdade não se luta

existe-se

por não se saber inexistir