31.5.07

211

se deus ajuda quem cedo madruga

ele poderia me ajudar a não madrugar cedo

já fiz isso por anos

não deixei de desgostar nem um tiquinho

não me acostumei

quanto tempo será que devemos repetir coisas desagradáveis para que o homem delas nos dispense

quantas vezes ainda terei que acordar cedo para trabalhar

quantas vezes ainda poderei ver a manhã no corgo e beijar meu trem e minhas meninas

para depois ter que ir desperdiçar tempo trabalhando

deixando para trás meu lar a troco

esta falta de convivência com a alegria me faz não saber o que fazer com ela

me faz fazer de tudo que talvez eu não devesse para preservar estas migalhinhas

até que me pego em ato falho

pensando pieguices

e prefiro jogar toda a alegria pela janela

que melhor a perda que o apego

30.5.07

210

como é bom ter um lar

alguém a nos esperar

encontrar paz mesmo quando o mundo nos enlouquece

saber que ali o mundo não entra

um mundo só seu e de quem lhe faz bem

se me foi dado tamanho bem

só peço que nunca me seja dado dele me afastar

que nunca a loucura minha ou alheia me leve a tanto

que nunca eu tenha de passar pela amarga lição de perder a tranqüilidade e sua fonte

que nunca este lar deixe de ser meu lar e passe a ser um lar de fachada

que para tudo ser perfeito

além deste lar

só me falta perder o medo de perdê-lo

meu lar é meu amor

mulher e mãe

sempre cuidando de mim

apesar de mim

não sei o que fiz para merecer tanto

não sei se houve um engano do destino

meu lar é meu trem

29.5.07

209

não suporto coisa mal feita

não suporto fazer coisa que parece não feita

tudo vem pela metade

tudo é sucedâneo

tudo tem o gosto dessas imitações

sem sentimento

sem prazer

um gesto só para preencher o tempo

para ver se esqueço

para ver se não vem mais forte a lembrança que sempre vem mais forte

a paz que sempre fica para depois

como uma moeda de ouro caída no chão que ninguém se abaixa para pegar pensando ser simplesmente uma moeda

depois vou pensar no bem

depois vou buscar ser feliz

como se eu soubesse o caminho para a felicidade

como se a felicidade estivesse em meu armário esperando para ser usada

como se a verdade fosse a mera escolha

o mero exercício de uma faculdade

sem prescrição

sem prazo decadencial

como se a perspectiva da morte não enlouquecesse

não fosse a espera do carrasco

sentado numa parada de ônibus enfumaçada e barulhenta

crente de estar numa ampla varanda com vista para a montanha e para o mar

28.5.07

208

não gosto de ficar vendo o futuro

de ficar vendo o passado

de ficar pensando e pensando e pensando

será este o meu presente

ir e voltar sem sair do lugar

dúzias de vezes

sempre turista de mim

em busca de lembrancinhas sexo drogas passeios e comida

sempre com medo das caras estranhas que vejo na cidade desconhecida

à procura de um hotel de bom nível

mas deitando em qualquer sarjeta quando o sono vem e a realidade de meus meios se revela

sem cama sem banho sem calor sem mim

sou pária nesta cidade

resto de um ser

óbolo da criação

troquei a espera pelo desespero

depois troquei o desespero pela falta de tristeza e de alegria

nada tenho a perder

e como temo perder nada

27.5.07

207

e lá vêm eles empurrar-me normas goela adentro

querendo dissecar o fato para no fim de tudo encontrar um ser que não existia no começo

que se construiu com base em presunções e subsunções

como se fosse coisa boa tanta ginástica mental

não passa do uso da imaginação por quem não sabe imaginar

não passa de desinteressantes fantasias

transformadas em fatos

em terror social

ninguém pensa honestamente

afinal

com quem não poderia ser tudo aquilo

somente não poderia ser com o poderoso de plantão

quem mais

todos os outros somos o ser sem rosto

a massa

que se conhece a fundo por amostragem

que se coleta em campo e se analisa em laboratório

e as conclusões que um proporciona aplicam-se a todos

porque são todos iguais esses animaizinhos

todos tão desinteressantemente iguais esses seres sem poder

é o que nós mesmos pensamos de nós

é o que se pode pensar

26.5.07

206

neste mundo não há lugar para o absoluto

no entanto busco o bem absoluto

e encontro a convivência de fatos bons e maus

tudo conforme a situação do sujeito

o que me faz crer no mal

porque o vejo

e não vejo indício algum de um ser supremo a cujos olhos o mal seja pior ou melhor que o bem

até porque o que ambos são para mim

é para mim apenas

aos olhos de outro pode ser o contrário

ou simplesmente nada

ou até o mesmo que para mim é

vá saber

no fim das contas dou-me por vencido

sinto-me forçado a dizer que tudo são fatos e que minha presença neles

e o juízo que deles eu faça

não passam de mero acidente

tudo que represento

só eu insisto em ver-me como o centro do acontecimento

não sei como ver diferente

os meros fatos são minhas desgraças ou minhas bênçãos

e fico à procura do deus que pense como eu

25.5.07

205

como está fria a manhã

dói nos ossos o dia

mas não é feio

nem triste

simplesmente minha natureza não concorda com a dele

e sou eu quem está no mundo

não é o mundo que está em mim

sem mim o mundo simplesmente é o mesmo

sem o mundo não sou

primeiro porque não sou um mundo

segundo porque nem sei se sou algo mais além de parte de algo maior

nunca vi nada meu que fosse além das fronteiras desta relação de dependência

nem sei quanto meu espírito está comprometido com isto porque nem sei o que é um espírito

embora eu talvez tenha um

vivo apenas para engordar

engordar

morrer quem sabe quando

todos os dias ter medo de que me cobrem a grande dívida

que nem sei quando contraí

engordar de medo

morrer de medo

cair

voltar a cair

e levantar mesmo sabendo que no fim se cai

24.5.07

204

por que tanto fazemos se o resultado é nada

o eufemismo da moda é modificar

é o termo que explica a destruição geral que promovemos

a pior coisa é essa idéia do ser supremo

idiotice suprema

faz-nos aceitar que em tudo haja uma vontade inabalável

sem que encontremos deus algum

tiramos a conclusão óbvia

para quem conhece o homem e seu tão curioso modo de pensar

ora se não há ainda um chefe nesta porra

então o chefe posso ser eu

a partir disso fazemos e desfazemos

e caímos num êxtase incoercível contemplando nossa natureza divina e a fantástica capacidade que temos de foder com tudo

somos decompositores

somos interruptores da vida

nosso surgimento neste planeta é sinal de uma grave doença

nós

que devoramos todas as forças deste ser

indefeso diante de nossa pequenez intrínseca

23.5.07

203

pelo menos não verei o mundo acabar

ele viverá mais do que eu sem sombra de dúvida

e isso é um consolo

ver o fim das coisas é terrível

viver é morrer

óbvio

vive-se para se ver a morte

da morte não vem a vida

e não me venha com essa conversa de ciclo

pois falo da vida com que posso me comunicar

da vida que é relevante para minha vida

que me importam micróbios decompositores

ou mesmo toda a sucessão de formas que a matéria assume em cada fase

se não é a vida de quem amo

então quero mais é que se foda

que merda tenho a ver com tudo isto

só não quero ver o fim deste planeta

este lindo animal

não quero ver o homem e as espécies superiores se afogando no mar de bosta humano

a porra do juízo final

as masmorras que deus nos reserva para sua diversão

quem me mandou nascer

quem me manda buscar sempre novas complicações

22.5.07

202

claro que algo vai acontecer

é só o tempo passar

no mínimo o cansaço de tanto ver a repetição dos segundos acontecerá

então diremos nada nada acontece

nada disso

algo acontece sim

só que é sempre a mesma coisa

se o mundo se constitui de fatos

nosso mundo é o da mesmice

esta exaustiva repetição das mesmas palavras

há algum problema

não ouço o que querem que eu ouça

na verdade não ouço nada

ou melhor

não escuto ou não percebo

ou sei lá caralho

que merda porra

tudo sempre tem que ser inadequado

sempre com essa cara tão igual das coisas que não se alcançaram

tudo ficou pelo meio do caminho

ao fim só chegou o que inexoravelmente avança

não importam os obstáculos

a morte a frieza da pedra a nudez de expressão

tudo mais que não foi

se fosse

mesmo assim eu morreria

21.5.07

201

até que hoje não é a pior das segundas

até agora tem estado até passável

vejamos nas próximas dezessete horas

talvez seja sinal de que a semana será boa

talvez não seja porra nenhuma

apenas uma manhã agradável

mas até que o dia hoje passou menos azedo

não sei se foi algo que comi

ou se o mundo estava mesmo mais leve

no que é difícil de acreditar

quem sabe a vida passe a só se tornar melhor doravante

acreditar nisso ou na desgraça não muda muito nada

mas tenho a necessidade de professar crenças

vício

e de que os outros creiam em mim

eis outra necessidade

a satisfação do homenzinho que mora aqui

olhem o mundo com meus olhos

deixem-me mandar e desmandar na ordem do todo

de modo que tudo me reflita

20.5.07

200

por que falar tantas vezes de uma mesma coisa

acho que porque não sou capaz de ouvi-la

acho que porque por mais medo que eu sinta de minhas temeridades

não as temo o bastante

no fim tudo vai dar certo

e dar certo significa que nunca sofrerei um dano irreversível

e no entanto aqui está a velhice a me desmentir

aí está a vida pingando gota a gota

que saco já estou cheio destes fantasmas

já estou cheio deste medo

já estou cheio

toda esta infelicidade já não me toca

ela dói sem parar

mas é como um longo casamento

os cônjuges se odeiam

e sabem quanto um é importante para o outro

há muito que nenhum dos dois busca mais explicação

apenas salvações

que essas igrejas sacodem diante de nossos olhos famintos

e vamos atrás de qualquer promessa

aceitamos qualquer conversa

que não seja a da voz aqui dentro

dizendo a verdade

19.5.07

199

o que desejamos é a certeza do fim dos julgamentos

que além de certo ponto não possam nos invadir

por questões justas ou injustas a nos prostrarem

a fazerem de nossas cabeças praças de guerra

de nosso cansaço o alimento de toda raiva

olhe dentro dos ônibus

paralelepípedos sobre rodas

com áreas transparentes

que mostram a infelicidade lá de dentro para a infelicidade aqui de fora

as coisas mais visíveis são as que menos identificamos

as que mais acontecem podem ser as mais estranhas

como a morte

que podemos tantas vezes ver

até que venha a nossa

e será como se nunca a tivéssemos visto

uma experiência única para nós

um fato a mais para o resto do mundo

nada que perturbe a atmosfera de indiferença

um sujeito morreu

qual

aquele alto e barrigudo que fumava cachimbo usava canetas-tinteiro e não cumprimentava ninguém

deixou viúva e dívidas

levou consigo sua raiva e sua maledicência

18.5.07

198

é tão fácil esquecer o que não dá prazer

tão bom quando o sono vem pesado embrulhar-nos

minha nossa não me fale em acordar

nada muda

nada

tudo permanece lá

num mundo que talvez não seja o pior

mas que é uma droga

e eu aqui

vivendo da dor que causo e que me é causada

um decompositor

que sofre e se deleita com sua natureza

que mata por prazer e sofre por sofrer

tão certo da licitude de sua conduta

17.5.07

197

hoje não acordei com nenhum medo especial

já sei qual será minha trajetória até a noite

nada que arranque pedaço nada que não se cure

o que não sei

nem me importa saber

é quantos feridos deixarei pelo caminho

a dor dos outros é a dor que não sinto

nada disso me diz respeito

estamos na vida para doer e sermos doídos

o dia já é um fato certo

salvo se a morte

fato certo a termo incerto que nos faz viver como pesarosos imortais

sabedores de metade das coisas

a metade que não vem ao caso

a outra metade

simplesmente mata

16.5.07

196

no fim do dia depois do trabalho

no fim da semana

tudo que quero é ser compensado

das infinitas horas gastas a troco de nada fazendo nada para ninguém e recebendo nada por isso

tudo que quero de volta é o tempo que passou

justo o que não posso

e por favor não me falem em esforço extra

não me digam que devo gastar meu tempo fora do trabalho também com inutilidades

estou morrendo

afinal estou vivendo

ladeira abaixo cada vez mais acelerado

e tudo que me cobram são esforços sobre esforços

gastar a vida não vivendo

como um vegetal produtivo

15.5.07

195

céu e inferno brincam de esconde-esconde dentro de mim

de hábito esforço-me para não ver

do esforço resulta o inverso

ou resulta nada

uma coisa imensa sem tempo e sem tamanho certo que denomino ignorância

um lugar em que nem sofro nem tenho prazer

só fico em busca de um motivo

afinal não devo ser a partícula mais sem sentido do universo

sei lá porra

como saber se sei

se nem sei se não sei

daqui a pouco morro

serei chorado por alguns

uns até sinceros

que não merecem nem deveriam sofrer por minha morte

mas torna-se cada vez mais doído buscar esperança

esta vida vai se enchendo de estranhamento

e cada vez menos me reconheço no espelho

a única coisa que sei que aprendi vivendo quarenta anos é que se podem viver quarenta anos

diante de um livro aberto

sem o menor desejo de lê-lo

ou de escrevê-lo

finjo que estou morrendo

acho que já morri

14.5.07

194

todo o meu medo é de ver o barco partir

o último

e descobrir que fui o único que ficou

e ver o mundo ganhar distância

e saber que na verdade quem partiu fui eu

caí do navio

andei na prancha

como todos um dia

santos ou magnatas

da primeira classe ou dos porões negreiros

todos um dia servirão de repasto a vermes e bactérias

lá está o fato

sentado na beira da estrada

calmamente pintando numa placa a palavra consumado

e eu sem freio sem acelerador sem volante nem alavanca de marcha

puramente uma consciência passiva

indo de encontro

13.5.07

193

talvez seja o incômodo de saber que apenas por mim nada se faria no mundo

talvez seja a farta quantidade de provas de que ainda não aprendi sequer a andar

e mesmo assim o tempo passa

ele não pára para ninguém

no meu caso parece que ele anda mais rápido

mais provável que eu ande mais lerdo

a vida cada vez mais íngreme e estreita

olhares que cada vez mais variam apenas entre compaixão e repulsa

eis a serventia dos velhos

que também quase sempre só sabem morrer de pena de si

deus me livre de mim

se é essa a velhice que me aguarda

deus me livre da vida

se viver é viver com este medo

12.5.07

192

a terrível morte

quanto me pesou conhecê-la

e saber que ela começa muito antes de chegar

desde cedo há seu toque

o que me faz querer logo o fim

na esperança de que assim cesse a angústia de não saber até que ponto chega meu padecimento

até que ponto a vida vai me usar sem que eu consiga sair de seus limites

11.5.07

191

ou é o tédio ou é a fúria

que tédio

nunca passo de mim

por aí

pelos cantos morrendo

agarrando-me a qualquer fio de esperança

não importa quão mesquinha

é a idéia que tenho de eternidade

a rua sem cor

e eu rezando por um fim

um móbile de defuntos decorando a sala

tudo é para sempre

e entretanto acaba

e acreditamos em tudo

ou em nada

simplesmente não sabemos o caminho

fechamos os olhos e dizemos é por aqui

não que eu tenha pedido tão pouco

só não imaginava que fosse tanto

nem tão estranho

nem tão lento um percurso tão curto

diga-me o que devo sentir

diga-me qual é a fórmula

para que eu seja o novo senhor da vida

o administrador da dor do mundo

10.5.07

190

todos loucos atrás de tempo

loucos de babar

como se a salvação aumentasse na mesma medida da loucura

usa-se todo tempo disponível para arrancar a pulso a felicidade das entranhas de deus

todos mal dormindo

mal trepando

comendo mal

sequiosos de uma droga mais potente

precisando sempre pagar por uma vida

morrendo e vivendo por pecúnia

permita deus que eu nunca seja um dos que ajudam a aumentar a máquina

que não venha de mim a mesquinharia suprema de distinguir homens de homens

de fazer de homens bestas de homens

de achar que o mundo como está vale a pena

minha nossa

talvez tudo que nos falte seja silêncio

e o fim dos desejos

mas parece tão normal viver cumulado de ambições

e das frustrações que se seguem

9.5.07

189

há dias menos intragáveis que outros

geralmente quando mais próximos do fim-de-semana eles são mais fáceis de aturar

nada como o ócio para tornar a vida agradável

nada como viver sob a lei do trabalho que dignifica para sentir ódio da vida e do mundo

por que esses que acham o trabalho tão bom não trabalham por todos

e nos deixam em paz

dizem que o trabalho é bom

regozijem-se então

se o mundo que queremos é este alucinadamente imerso na ganância e na mesquinhez

trabalhemos todos feito loucos então

valhamos menos que qualquer bem de capital

morramos dando graças porque a droga de vida acabou

no entanto se o mundo que quisermos for um mundo em que tenhamos o bastante para tão-só nele estarmos

talvez então pudéssemos descobrir um jeito de viver deste planeta sem matá-lo

talvez então até descobríssemos em nós alguma decência

8.5.07

188

aprenda a permanecer calmo

ensinaram-no a querer tudo e não lhe deram nada

simplesmente vieram com a história do livro aberto cheio de folhas em branco que eu particularmente até o momento enchi de palavrões e de súplicas medrosas

e um dia vi que a velhice começava

ainda que digam que quarenta é juventude

então imagino a bosta que a velhice deve ser

vivo num mundo cuja vontade é oposta à minha

não sei se há espírito

e se há

se essa bosta é mortal ou imortal

se imortal sou escravo

se mortal há uma saída

pois não quero mais ser

sei que devo ser como meu semelhante

sobre quem tão pouco sei

e o pouco que sei faz-me odiá-lo

7.5.07

187

morrerei numa segunda

sentindo no ar a satisfação dos que vão trabalhar

morrerei numa segunda

pois viver numa segunda já é sofrer uma pequena morte

e minha danação eterna será uma segunda mal dormida

muito fria de manhã e inconcebivelmente quente à tarde

a segunda é mais certa que eu

um dia pararei de perder horas de sono anos de vida a troco de acordar na segunda pronto para mais aquela semana

a segunda é o fato que mais espelha este mundo

toda segunda-feira lembra-nos de nosso lugar no mundo

de como se vive

de por que se morre

6.5.07

186

além de ter que deixar quarenta horas da minha semana com o feitor

tenho ainda que moderar-me na comida no fumo na bebida

além de ter que ter um emprego ainda tenho que amar a vida que tenho tendo um emprego

um emprego bem caquinha diga-se

amá-la a ponto de renunciar aos prazeres que só a preguiça e os vícios podem me dar

minha nossa que erro vir a este mundo integrando a classe trabalhadora

eis por que não quero ter um filho

ao menos a razão moral

não quero trazer ao mundo mais um decepcionado que se descubra zé mané sem chão onde cair morto

sem tostão e tendo que pensar na velhice na saúde em declínio na vida insossa que é tudo que temos no temor tamanho de perdê-la

no desejo imenso que tem que ser pisoteado esmagado comprimido dobrado e enrolado

e guardado dentro do peito para virar uma fera viva enjaulada a consumir-nos

até que o esqueçamos sem que ele nos esqueça

até que este ódio apócrifo seja tudo que dele reste em nossa consciência

até que não haja mais satisfação possível

5.5.07

185

este incômodo com que ando

como quem conhece a morte ou quem tem câncer e não sabe

levantando ainda pela manhã já sabedor da noite

andando sobre o longo rasto que o homem por onde passe estampa

mastigo este sabor

o mundo é assim

partículas de corpúsculos de fragmentos de pedaços minúsculos multiplicando-se exponencialmente a cada infinitésimo de fração de milionésimo de segundo

vou passageiro de mim

presumo que com destino

nunca sei que pedaço perderei a seguir

não espero com calma

espero em silêncio

4.5.07

184

o tempo

não posso perdê-lo

vou como uma vaca louca num salão de cristal

enquanto só gostaria de dormir mais um pouco

só desejaria perder mais um monte de tempo dormindo

que tudo é perdido mesmo

tudo é um puta dum desperdício

mas não somos donos de nossas prodigalidades

qualquer coisa que fazemos é por vontade alheia

mas a queda em qualquer vala é de nossa exclusiva responsabilidade

o silêncio lá no fundo

as paredes altas e lisas

a vida lá fora

o tempo partindo para outros destinos

e colocam terra sobre mim

3.5.07

183

hoje estou um pouco em paz

algo de bom aconteceu

o mundo está mais fácil de engolir

o que não somos capazes de fazer por isto

uma mísera gotícula de felicidade

matar roubar violentar trair

tudo pelo prazer

para nos sentirmos fora da corrente da infelicidade

para termos a paz que o dia-a-dia não nos dá

endorfinas e serotoninas

o que não toleramos por uma vaga possibilidade de sucesso

tudo pela ilusão de superar a morte

para não sermos da multidão a sacudir-se nos coletivos

para não integrarmos esses gigantescos monumentos vivos chamados filas

para não jazermos em favelas e conjuntos habitacionais

não sei quanto vai durar esta alegria

certamente bem menos do que ainda tenho para viver

mesmo que o que me reste de vida seja só um segundo

como se houvesse possibilidade de que o medo fosse embora de vez

como se eu estivesse livre de deus

2.5.07

182

há saída

ou ao menos eu devia procurá-la a qualquer custo

fazer o onifodão entender de uma vez por todas que não gosto mesmo de ser sua criatura

mas não sou tão grande assim

meu preço é até bem barato

e o todo todo sabe disso melhor do que eu

ele apenas nos manobra

apenas deixa a situação ir ao limite extremo para então restaurar o equilíbrio

e para que os aduladores fiquem exclamando nossa como ele é sábio

e então todos vão dormir felizes com a divina providência que nunca os abandona

essa história é um saco

ter que acreditar na bondade divina por coação

ser constantemente constrangido a um bom proceder

proceder esse que nem sei se é tão bom assim

presumo que seja adequado

socialmente aceitável

até agora tem me mantido fora de hospícios e cadeias e não me trouxe mutilações visíveis

e talvez por isso eu devesse ser grato ao onitudo

para que ele continuasse me poupando

1.5.07

181

mais uma manhã na escravidão

e os próximos trinta anos

caso eu permaneça aqui

não deverão ser diferentes

trabalho

para poder comer

a liberdade que vá à merda

o trabalho me enche de dignidade

saio dele tão cheio de dignidade

tão cheio que tenho até corrimentos

tão cheio que sinto uma gana desesperada de cometer uma vileza só para me aliviar

algo que me permita esquecer por um momento que a bondade é uma imposição dos maus

algo que me faça esquecer o opressivo deus e suas procissões

e se a onda é fazer suposições sobre deus e morte

deixem-me fazer a minha

pois eu creio que se esse deus existe

como tantos afirmam e tantos negam

pois bem

se o tal do deus existe

ele caga e anda para nós

e não sei se ele está errado